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quinta-feira, setembro 11, 2003

A razão do ecumenismo (1ª parte, 2ªvia) 

Desde sempre o Homem intuiu a existência de Deus, dum Ser superior. No início, essa intuição resultou da necessidade de explicar a sua própria existência e a existência de todas as coisas. Resultou também da necessidade do Homem enfrentar a sua total fragilidade perante o Mundo e as contingências do destino. A Religião e a Fé começaram por ser resultado de uma necessidade ontológica e também da necessidade do Homem pensar que de alguma forma poderia controlar o seu destino, interpretando, influenciando e aplacando os desígnios, muitas vezes terríveis, desses Deuses que reinavam sobre o Mundo.
A Religião começou pois por ser uma explicação cosmológica e também um meio para o Homem, através dos ritos, dos sacrifícios e das invocações tentar controlar um pouco melhor aquilo que influenciava a sua sobrevivência: as colheitas, as guerras, as secas, a Vida e a Morte.
Chamemos a este período inicial de pré-história religiosa porque a partir de certa altura (ou de certas alturas consoante a zona do globo) a natureza do fenómeno religioso conheceu uma alteração profunda.
Com efeito, mais tarde, o Homem descobriu dentro de si algo que o transcendia, algo que sentia ligá-lo aos Deuses ou a um Deus. O Homem descobriu que havia um Deus, ou Deuses ou algo definível como um Eu Universal (Brahman, na religião Hindu), que tinha um projecto para o Homem, enquanto elemento da Sua Criação.
Deus foi revelando ao Homem, em vários momentos da História, duas coisas essenciais:
A primeira é que enquanto criaturas d´Ele, temos na nossa natureza algo d´Ele, algo que Lhe é consubstancial, algo que a nossa cultura Judaico-Cristã, tal como a Islâmica, chama Alma, mas que existe com outros nomes no Budismo, Hinduísmo, em todas as grandes Religiões.
A outra revelação é que, por forma a que a nossa alma, a nossa natureza divina, vá ao encontro de Deus, ao encontro do Seu conhecimento pleno, é necessário que o Homem consiga dominar e suplantar a sua componente material. Para isso, Deus revelou-nos em muitos momentos e lugares, em inúmeros ambientes culturais completamente diversos e, portanto, através de muitas linguagens, uma dimensão Ética para a nossa existência. Essa dimensão Ética existe, de forma naturalmente diferente em todas as religiões mas em todas elas é apontada como sendo o caminho do Homem até Deus, caminho esse universalmente considerado como o caminho da Salvação, da Perfeição, do Nirvana, ou daquilo que lhe quiserem chamar.
A noção hebraica da Aliança entre Deus e o Homem, esse monoteísmo ético tão inovador no tempo e no mundo em que surgiu, é no fim de contas comum a todas as grandes religiões, anteriores ou posteriores, mesmo que não sejam monoteístas. Aliás, se excluirmos as religiões animistas e as religiões a que se convencionou chamar pagãs, temos que a fronteira entre os monoteísmos e politeísmos das grandes religiões é ténue e, sem dúvida, muito mais formal do que substancial. É sobretudo uma questão de ênfase no Deus essencial ou de ênfase nas suas diferentes manifestações ou avatares.
Temos pois que ambas as revelações, a descoberta da Alma enquanto natureza divina no Homem e a descoberta da Aliança entre Deus e o Homem estão pois intimamente ligadas, mesmo que nem sempre tenha havido consciência disso. No fundo o que o Homem descobriu no Sinai, na Mesopotâmia, na Pérsia, na Índia, na China, na Palestina, na Arábia, é que havia dentro do seu Eu algo que não era seu mas sim de Deus, algo que o aproximava, o identificava com Deus. Isto mudou tudo. A noção da Alma, do Attman, do Dharma, criou a noção do Deus Pai e criou a noção de que a Salvação é o encontro com Deus.
A aparente diversidade, que às vezes parece antagónica, entre as Grandes Religiões, tem simplesmente a ver com o facto de Deus, ao revelar-se aos Homens, ter tido de o fazer do modo apropriado à realidade cultural e civilizacional existente em cada Lugar e em cada Momento em que Se revelou. Eu direi mesmo que esse modo de Se revelar teve não só em conta a realidade contemporânea do momento de cada revelação em particular mas também com a realidade futura (potencial ou pré-determinada) desse meio e doutros meios a serem posteriormente influenciados pelo meio original.
Para mim, que sou Católico, a consequência lógica e imediata desta reflexão é que se eu tenho verdadeiramente Fé em Deus, no quadro da minha Religião, se acredito realmente que Deus é Criador e nosso Pai e se revelou para possibilitar a nossa salvação, então não posso deixar de considerar as outras Religiões como verdadeiras manifestações de Fé e como consequências de verdadeiras revelações. As diferenças rituais, doutrinais, culturais, resultam disso mesmo, de diferenças culturais à altura da génese de cada Religião e durante todo o período subsequente a essa génese. A análise profunda da essência de cada uma das Grandes Religiões revela certamente muito mais semelhanças do que diferenças.
Mais do que isto: a ideia de que a verdadeira revelação e correspondente possibilidade de salvação só foi posta à disposição de uma parte da humanidade é totalmente inaceitável. Se eu considero que o Hinduísmo tem uma natureza absurda, incoerente e que foi apenas o instrumento da preservação de uma estabilidade social tutelada pela casta bramânica, como não dizer algo igualmente demolidor sobre o Cristianismo?
A negação da Verdade das outras religiões prejudica objectivamente a afirmação da Verdade da nossa. A mútua exclusão e anatemização entre Religiões é fonte, talvez a maior, do ateísmo! A assunção profunda da Verdade da nossa religião obriga-nos a aceitar e respeitar a Verdade das outras religiões. O Ecumenismo não deve pois ser um esforço de tolerância: é um imperativo racional e teológico!
Simples não é? Infelizmente não é nem tem sido nada simples. A História da Humanidade é a prova de que este conceito profundo mas simples não foi por ela apreendido.
A questão perturbadora que se coloca é a seguinte: no limite, se os Homens não conseguem aceitar a verdade das religiões dos outros será então que isso poderá ser um sinal de que nenhuma delas é verdadeira, uma vez que não é concebível que apenas uma o seja?
Para entendermos isto temos que reflectir profundamente sobre a natureza do fenómeno religioso no íntimo de cada Homem mas sobretudo no seio da sociedade humana.
Para os que, como eu, tem Fé, a importância extraordinária que as Religiões tem tido na História da Humanidade, nos seus grandes saltos civilizacionais, nas grandes rupturas ou descontinuidades históricas, tem como razão primeira o simples facto de em determinadas alturas, em diferentes lugares, de diferentes maneiras, Deus ter-Se revelado ao Homem e revelado a ele a sua própria natureza divina.
A questão está precisamente aqui - em vários momentos da História o Homem recebeu a Revelação: o que é que tem feito com ela?
Para aqueles a quem, directa ou indirectamente, chegou a Revelação, a importância desse facto foi e é enorme e deixará sempre uma influência inapagável. A consequência dessa importância no modo do Homem ver a Vida bem como a dimensão ética associada à Revelação foi que a Religião passou a ter um extraordinário papel estruturante a nível social, cultural e político.
Com efeito, em determinada altura a necessidade inata do Homem para se organizar em sociedade passou a ter um catalizador formidável: a Ética da mensagem revelada. Essa Ética, revelada e interpretada, passada a escrito em Livros Sagrados, passou a reger o Homem não só na sua relação com Deus mas também na sua relação com os outros. O Homem assumiu que Deus tem um desígnio para ele e que é no seu comportamento em sociedade e face à sociedade, que o Homem pode demonstrar a Deus e aos outros homens a sua aceitação desse Seu desígnio.
Isto é comum a todas as grandes religiões mas em graus bastante diferentes. Curiosamente as religiões que enfatizam mais a relação do Eu individual com o Eu universal, como o Budismo, são mais tolerantes para as outras religiões do que aquelas que põe mais ênfase no modo como Deus quer que nos relacionemos entre nós.
Voltemos à questão essencial.
Imaginemos uma determinada sociedade passada na qual, em dada altura, ocorreu uma Revelação Divina. Imaginemos que, como tem sido padrão, essa revelação traz uma componente ética entendida como instrumento de salvação. Imaginemos que essa revelação encontra suficiente eco nessa sociedade para que o núcleo embrionário de pessoas que aderiram em primeira instância à referida mensagem divina consigam propagá-la. Inevitavelmente, esse grupo de indivíduos, desejando ardentemente dar testemunho e desejando que esse testemunho frutifique, irão organizar-se gerando assim uma comunidade actuante. A forma como essa comunidade irá evoluir e organizar-se vai depender muito do entendimento ou interpretação que ela fizer da mensagem revelada. Dependerá muito do meio cultural e moral envolvente. Dependerá muito da resistência que encontrar nessa sociedade, a qual será sem dúvida determinada pelo grau de contraste entre a essência dessa mensagem e os padrões éticos, teológicos e culturais então prevalecentes. Dependerá muito da evolução que essa sociedade vier a ter e do papel mais ou menos estruturante que essa sociedade vier a atribuir a essa comunidade e à mensagem por ela anunciada.
Nuns casos, no seio da comunidade inicial de crentes irá formar-se um clero organizado e hierarquizado, como a Igreja Católica, noutros um clero não centralizado como no Islão, noutros casos uma simples comunidade de monges como a Sangha Budista. Mais tarde aprofundaremos as causas destas diferentes evoluções, sempre muito ligadas à relação que se estabelece com a própria mensagem revelada.
Voltemos de novo ao assunto. Imaginemos que a referida comunidade de crentes consegue captar a maioria da sociedade em seu redor para a sua mensagem de salvação. O que vai naturalmente acontecer é que, dada a ânsia pela salvação do ser humano, essa sociedade vai mudar os seus padrões éticos, os seus padrões rituais, os seus padrões comportamentais. A própria organização social vai-se rearranjar por forma a se compatibilizar com a mensagem revelada e agora aceite de forma generalizada.
Vai também acontecer que o clero entretanto formado vai criando um ritual cada vez mais definido e complexo para que os fiéis possam manifestar de forma visível e correcta a sua fé, a sua aceitação da mensagem revelada, para assim alcançarem a sua salvação individual. Vai também acontecer que, no seio desse clero ou fora dele, vão surgir teólogos que vão interpretar, aprofundar, às vezes adulterar a mensagem inicial. Vai também acontecer que fiéis iluminados por essa fé (às vezes chamados de santos) vão ter revelações, visões, intuições, complementares à revelação inicial.
Ou seja, sobre a mensagem inicial revelada vão-se acumular camadas de rituais, interpretações, novas revelações, complexas teorias teológicas, que se acrescentam a ela, criando por um lado um carácter mais distintivo dessa religião mas, por outro lado, obscurecendo o essencial da mensagem inicialmente revelada, afastando progressivamente esse carácter essencial da compreensão dos fiéis.
Por outro lado, todo este esforço de inteligência e de fé, de ritualização e de teologia, também contribui para uma maior dinâmica dessa religião e como tal para uma sua maior perenidade. Provavelmente aconteceria que sem toda a parafernália clerical, ritualista e teológica, a dita mensagem revelada se fosse perdendo por simples difusão, por capilaridade.
Aliás, o grande fundamento das organizações religiosas é precisamente a preservação da sua Verdade Revelada. O problema tem sido sempre que essa preservação tem sido sempre feita à custa dum certo eclipse daquilo que é verdadeiramente essencial na mensagem divina.
Tenho pois para mim que a essência das revelações divinas que estão na génese das grandes religiões é muito semelhante. O que diferencia as religiões é a forma como a sociedades humanas absorvem e interiorizam essas verdades reveladas, como se organizam em torno delas, como criam uma relação biunívoca com elas. Isto é, sendo verdade que a revelação divina altera profundamente a sociedade em que ocorre também é verdade que esta sociedade, ao longo da sua evolução, também afecta e condiciona a forma como essa revelação é entendida e aplicada.
Um outro aspecto a referir é que em cada revelação histórica, Deus como Pai que é, pretende sobretudo a nossa Salvação, ou seja que a nossa natureza divina O conheça e vá ao Seu encontro. Sendo assim, o que as Religiões oferecem ao Homem é a sua Salvação. Uma vez que, como vimos essas religiões se foram diferenciando uma das outras afastando-se daquilo que era verdadeiramente essencial na mensagem divina, cada uma dessas religiões se tem assumido perante os homens como o único caminho, a única porta para a sua salvação. Podemos dizer que cada Religião, cada Igreja pretende ser uma espécie de arca de Noé fora da qual não há salvação.
Tudo isto são factores que explicam que as grandes religiões são normalmente divergentes e antagónicas apesar do que tem em comum naquilo que é verdadeiramente essencial.

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