quarta-feira, outubro 22, 2003
A razão do ecumenismo (4ªparte)
A partir deste momento histórico, materializado no Édito de Milão, no qual a Fé Cristã passou de religião perseguida a religião de estado do Império Romano, houve uma alteração profunda, irremediável e em múltiplos aspectos não só da Igreja Cristã mas também, mais tarde e consequentemente, dos próprios cânones da Fé Cristã.
A primeira mudança foi na relaação entre a Igreja e o poder secular, entre a religião e a política. Com efeito, se a instituição imperial passou a utilizar a Igreja como fonte de legitimação e auxiliar de controle político, ideológico e administrativo, a Igreja também utilizou o poder secular posto à sua disposição para consolidar e reforçar a religião Cristã por todo o Império, multiplicando o esforço de evangelização mas também combatendo e reprimindo as religiões ditas pagãs. Muitos bispos, antes vítimas de perseguição, passaram a ser zelosos instigadores de destruição de templos dedicados aos deuses greco-romanos, às divindades orientais, etc. O forte braço de Constantino deu cobertura a tudo isto e forçou a conversões por todo o Império, por toda a sua estrutura administrativa e militar.
Mais importante e mais carregado de consequências do que isto foi o facto de Constantino, apesar de mudar a religião de estado, não ter prescindido do atributo imperial de pontifex maximus (sumo pontífice), ou seja, ficou tacitamente aceite entre ele e a Igreja, que esta, como tudo no Império, estava sujeita à autoridade suprema e à supervisão do Imperador. É devido a isto que iremos assistir a imperadores como Constantino, Teodósio, Justiniano entre outros a presidirem a concílios da Igreja e a arbitrarem complexas questões teológicas. Já lá iremos.
Constantino não era homem para brincadeiras e, ao adoptar o Cristianismo como religião do Estado, fê-lo para estabilizar o Estado e não para o contrário. Como tal, naturalmente exigiu à sua nova religião consistência e harmonia doutrinal para evitar guerras civis entre seitas cristãs.
Aliás esta exigência fazia todo o sentido. Com efeito o Cristianismo nasceu entre os judeus mas foi criado no universo helenístico, o mais especulativo e dialético que é possível imaginar em termos filosóficos e epistemológicos. Sendo assim, não só a mensagem de Cristo como a sua natureza foram pasto de inumeráveis interpretações, discussões, especulações que foram origem de numerosas heresias e correspondentes seitas: foram os ebionitas, os marcionitas, os docetas, etc.
A questão da natureza de Cristo, ou seja o mistério da sua encarnaçã£o foi um campo particularmente fértil para a polémica e para o odium theologicum.
Logo em 325, Constantino convocou e presidiu ao Concílio de Niceia para discutir e resolver as perturbações teológicas causadas pelo advento do arianismo. Em Alexandria, então um dos mais notáveis centros da Cristandade, explodira uma disputa teológica entre um sacerdote chamado Ário e seu Bispo donde nasceu um grave impasse teológico pois Ário passara a afirmar que o Logos Encarnado era inferior a Deus Pai e que se o Pai gerou o Filho, então houve uma época em que o Filho não existia. Ário acreditava em Jesus Cristo como o Salvador, mas subordinava o Filho ao Pai. Negava pois a divindade de Jesus Cristo, pois afirmava que ele não era igual ao Pai. Desde os tempos apostólicos a Igreja combatia os que pregavam divindades subordinadas a Deus, derivadas das seitas gnósticas. Tudo isso era contra o mistério da Redenção, pois a Redenção, como antes fundamentara o terrível bispo Atanásio, não teria sentido se Deus mesmo não tivesse se encarnado, se Jesus Cristo não fosse verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Tomando Constantino conhecimento dessa discussão herética e do perigo iminente de cisão na Igreja, promoveu a convocação de um Concílio que se realizou na cidade de Niceia, próxima de Constantinopla, em 325. Ao Concílio, um dos grandes marcos da vida da Igreja acorreram bispos da Ásia Menor, Palestina, Egipto, Síria, e até bispos de fora do Império Romano, ou seja, de todos os lugares onde a Cristandade tinha se estabelecido com vigor, como a Índia e a Mesopotãmia. Foi aí redigido o Credo de Niceia que confirmava que Jesus Cristo, Deus Encarnado, é ponto fundamental do Cristianismo. O próprio Credo passou a estabelecer o conteúdo da fé da Igreja.
Não foi esta a última vez que um imperador convocou um concílio para expurgar da doutrina da Igreja novas heresias à volta do mistério da encarnação de Cristo. Passo a citar alguém que percebe efectivamente do assunto, neste caso o bispo brasileiro D.Estevão de Bettencourt: Desde os inícios da era cristã, perguntava-se como podia Cristo ser simultâneamente Deus e homem. A primeira tentativa de solução foi a dos Docetas no séc. II, os quais ensinavam que o Salvador não fora verdadeiro homem, pois não tivera senão uma aparência de corpo humano (dokéo, parecer, em grego). Tal solução não conseguiu implantar-se e no séc. V propôs-se outra fórmula: Nestório, Patriarca de Constantinopla, asseverava que Cristo era tão realmente Deus e homem que nele havia duas Pessoas (a Divina e a humana) e duas naturezas (a Divina e a humana). Sabemos que em linguagem técnica "natureza" vem a ser a essência ou a estrutura de um ser, ao passo que "pessoa" é o sujeito consciente ou o "Eu" que age por meio de determinada natureza. A sentença de Nestório, admitindo duas pessoas ou dois"Eu" em Cristo, cindia a unidade do Salvador; foi, por isto, rejeitada no Concílio de Éfeso (431). Tomou vulto então, à guisa de reacção contra o erro condenado, a teoria oposta, propugnada por Eutiques, de Constantinopla, e Dióscoro de Alexandria: em Cristo haveria uma só natureza (a natureza divina, a qual teria absorvido a natureza humana). Tal era a doutrina do Monofisitismo. O bispo de Roma S.Leão Magno rejeitou esta tese como contraditória ao genuíno conceito de Encarnação, asseverando em 449 haver em Cristo uma só Pessoa (ou um só "Eu"), a Pessoa Divina, a qual se manifestava por duas autênticas naturezas (a Divina e a humana) não mutiladas nem confundidas. Assim punha-se fim a uma etapa importante da Cristologia. Ora foi no Concílio de Calcedónia em 451, presidido, note-se bem, pelo imperador Marciano, que esta doutrina foi instituída pela Igreja como dogma de Fé.
Bem entendido, nem todos ficaram convencidos, apesar de ampla campanha doutrinal apoiada às vezes por acções militares patrocinadas pelo imperador. Ainda hoje existe a Igreja Cristã Nestoriana, sobretudo no Próximo Oriente.
Seja como fôr o que há a reter destes factos é que a partir desta altura o Imperador de Roma passou a assumir-se como uma espécie de guardião da pureza da doutrina Cristã e como última instância das polémicas religiosas. Por outras palavras, foi neste tempo aceite e interiorizado com aparente facilidade pelo clero cristão que o imperador era chefe da Igreja ainda que o seu poder emanasse de Deus, desde que ele fosse exercido com objectivo de fazer cumprir a Sua Vontade. Temos pois uma relação biunívoca de poder: a Igreja obedece ao Imperador mas é a Igreja que o legitima. Isto imprimiu na Igreja cristã um cunho inteiramente novo cujas consequências perduraram durante mais de um milénio.
Contudo, nestes tempos de ocaso do Império Romano, tudo evoluía a uma velocidade estonteante pelo que rapidamente começaram a surgir matizes divergentes na relação entre a Igreja e o Poder. Com efeito, a evolução dos acontecimentos foi totalmente diferente nas partes ocidental e oriental do Império e isso teve consequências que ainda hoje perduram. (continua...)
A primeira mudança foi na relaação entre a Igreja e o poder secular, entre a religião e a política. Com efeito, se a instituição imperial passou a utilizar a Igreja como fonte de legitimação e auxiliar de controle político, ideológico e administrativo, a Igreja também utilizou o poder secular posto à sua disposição para consolidar e reforçar a religião Cristã por todo o Império, multiplicando o esforço de evangelização mas também combatendo e reprimindo as religiões ditas pagãs. Muitos bispos, antes vítimas de perseguição, passaram a ser zelosos instigadores de destruição de templos dedicados aos deuses greco-romanos, às divindades orientais, etc. O forte braço de Constantino deu cobertura a tudo isto e forçou a conversões por todo o Império, por toda a sua estrutura administrativa e militar.
Mais importante e mais carregado de consequências do que isto foi o facto de Constantino, apesar de mudar a religião de estado, não ter prescindido do atributo imperial de pontifex maximus (sumo pontífice), ou seja, ficou tacitamente aceite entre ele e a Igreja, que esta, como tudo no Império, estava sujeita à autoridade suprema e à supervisão do Imperador. É devido a isto que iremos assistir a imperadores como Constantino, Teodósio, Justiniano entre outros a presidirem a concílios da Igreja e a arbitrarem complexas questões teológicas. Já lá iremos.
Constantino não era homem para brincadeiras e, ao adoptar o Cristianismo como religião do Estado, fê-lo para estabilizar o Estado e não para o contrário. Como tal, naturalmente exigiu à sua nova religião consistência e harmonia doutrinal para evitar guerras civis entre seitas cristãs.
Aliás esta exigência fazia todo o sentido. Com efeito o Cristianismo nasceu entre os judeus mas foi criado no universo helenístico, o mais especulativo e dialético que é possível imaginar em termos filosóficos e epistemológicos. Sendo assim, não só a mensagem de Cristo como a sua natureza foram pasto de inumeráveis interpretações, discussões, especulações que foram origem de numerosas heresias e correspondentes seitas: foram os ebionitas, os marcionitas, os docetas, etc.
A questão da natureza de Cristo, ou seja o mistério da sua encarnaçã£o foi um campo particularmente fértil para a polémica e para o odium theologicum.
Logo em 325, Constantino convocou e presidiu ao Concílio de Niceia para discutir e resolver as perturbações teológicas causadas pelo advento do arianismo. Em Alexandria, então um dos mais notáveis centros da Cristandade, explodira uma disputa teológica entre um sacerdote chamado Ário e seu Bispo donde nasceu um grave impasse teológico pois Ário passara a afirmar que o Logos Encarnado era inferior a Deus Pai e que se o Pai gerou o Filho, então houve uma época em que o Filho não existia. Ário acreditava em Jesus Cristo como o Salvador, mas subordinava o Filho ao Pai. Negava pois a divindade de Jesus Cristo, pois afirmava que ele não era igual ao Pai. Desde os tempos apostólicos a Igreja combatia os que pregavam divindades subordinadas a Deus, derivadas das seitas gnósticas. Tudo isso era contra o mistério da Redenção, pois a Redenção, como antes fundamentara o terrível bispo Atanásio, não teria sentido se Deus mesmo não tivesse se encarnado, se Jesus Cristo não fosse verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Tomando Constantino conhecimento dessa discussão herética e do perigo iminente de cisão na Igreja, promoveu a convocação de um Concílio que se realizou na cidade de Niceia, próxima de Constantinopla, em 325. Ao Concílio, um dos grandes marcos da vida da Igreja acorreram bispos da Ásia Menor, Palestina, Egipto, Síria, e até bispos de fora do Império Romano, ou seja, de todos os lugares onde a Cristandade tinha se estabelecido com vigor, como a Índia e a Mesopotãmia. Foi aí redigido o Credo de Niceia que confirmava que Jesus Cristo, Deus Encarnado, é ponto fundamental do Cristianismo. O próprio Credo passou a estabelecer o conteúdo da fé da Igreja.
Não foi esta a última vez que um imperador convocou um concílio para expurgar da doutrina da Igreja novas heresias à volta do mistério da encarnação de Cristo. Passo a citar alguém que percebe efectivamente do assunto, neste caso o bispo brasileiro D.Estevão de Bettencourt: Desde os inícios da era cristã, perguntava-se como podia Cristo ser simultâneamente Deus e homem. A primeira tentativa de solução foi a dos Docetas no séc. II, os quais ensinavam que o Salvador não fora verdadeiro homem, pois não tivera senão uma aparência de corpo humano (dokéo, parecer, em grego). Tal solução não conseguiu implantar-se e no séc. V propôs-se outra fórmula: Nestório, Patriarca de Constantinopla, asseverava que Cristo era tão realmente Deus e homem que nele havia duas Pessoas (a Divina e a humana) e duas naturezas (a Divina e a humana). Sabemos que em linguagem técnica "natureza" vem a ser a essência ou a estrutura de um ser, ao passo que "pessoa" é o sujeito consciente ou o "Eu" que age por meio de determinada natureza. A sentença de Nestório, admitindo duas pessoas ou dois"Eu" em Cristo, cindia a unidade do Salvador; foi, por isto, rejeitada no Concílio de Éfeso (431). Tomou vulto então, à guisa de reacção contra o erro condenado, a teoria oposta, propugnada por Eutiques, de Constantinopla, e Dióscoro de Alexandria: em Cristo haveria uma só natureza (a natureza divina, a qual teria absorvido a natureza humana). Tal era a doutrina do Monofisitismo. O bispo de Roma S.Leão Magno rejeitou esta tese como contraditória ao genuíno conceito de Encarnação, asseverando em 449 haver em Cristo uma só Pessoa (ou um só "Eu"), a Pessoa Divina, a qual se manifestava por duas autênticas naturezas (a Divina e a humana) não mutiladas nem confundidas. Assim punha-se fim a uma etapa importante da Cristologia. Ora foi no Concílio de Calcedónia em 451, presidido, note-se bem, pelo imperador Marciano, que esta doutrina foi instituída pela Igreja como dogma de Fé.
Bem entendido, nem todos ficaram convencidos, apesar de ampla campanha doutrinal apoiada às vezes por acções militares patrocinadas pelo imperador. Ainda hoje existe a Igreja Cristã Nestoriana, sobretudo no Próximo Oriente.
Seja como fôr o que há a reter destes factos é que a partir desta altura o Imperador de Roma passou a assumir-se como uma espécie de guardião da pureza da doutrina Cristã e como última instância das polémicas religiosas. Por outras palavras, foi neste tempo aceite e interiorizado com aparente facilidade pelo clero cristão que o imperador era chefe da Igreja ainda que o seu poder emanasse de Deus, desde que ele fosse exercido com objectivo de fazer cumprir a Sua Vontade. Temos pois uma relação biunívoca de poder: a Igreja obedece ao Imperador mas é a Igreja que o legitima. Isto imprimiu na Igreja cristã um cunho inteiramente novo cujas consequências perduraram durante mais de um milénio.
Contudo, nestes tempos de ocaso do Império Romano, tudo evoluía a uma velocidade estonteante pelo que rapidamente começaram a surgir matizes divergentes na relação entre a Igreja e o Poder. Com efeito, a evolução dos acontecimentos foi totalmente diferente nas partes ocidental e oriental do Império e isso teve consequências que ainda hoje perduram. (continua...)