sexta-feira, dezembro 12, 2003
Perder o que não temos, recuperar o que nunca tivemos
Caro Emílio,
Também eu fui educado como católico e todavia não é por isso que ainda o sou. Diria antes que é apesar disso que o sou. Aliás, a educação católica é algo que em rigor não existe. Não somos como os muçulmanos nem temos as madrassas que eles tem. A nossa chamada educação católica não é mais do que educação geral num ambiente exteriormente católico. Obviamente, a educação religiosa não deve servir para nos impôr a Fé. Isso simplesmente não é possível. Mas o que deveria fazer era pôr-nos minimamente em contacto com o conteúdo ou contexto histórico, filosófico, sociológico e cultural da nossa Fé. E é aí que a coisa falha normalmente. Senão como explicar que eu, tendo andado na catequese até aos 14 anos (e dela saí quando, embora não assumidamente, tinha já perdido a minha primeira fé), só já depois dos 30 é que percebi a simbologia do Génesis e a relação entre Antigo e Novo Testamentos, só depois dos 30 é que li os Evangelhos na íntegra, só perto dos 40 é que, como dizia S.Tomás de Aquino, comecei a ter alguma inteligibilidade na minha Fé. Mas não é sobre a educação católica que você me veio falar. É sobre a perda da Fé.
Eu conheço quem diga que perdeu a Fé mas aquilo que verdadeiramente perdeu foi a convicção de que tinha fé pois, verdadeiramente, nunca a teve ou já a perdera há muito. Volto ao meu caso pessoal: durante anos fingi a mim próprio que tinha fé e só a recuperei algum tempo depois de ter interiorizado que já não a tinha mais.
Quero com isto dizer o seguinte: quando pensamos que estamos a perder a fé devemos primeiro pensar como é a fé que ainda temos, devemos sobretudo pensar porque a temos. E as respostas são normalmente desanimadoras pois descobrimos muitas vezes que a nossa fé não tem uma base sólida, não tem raízes dentro de nós, é algo a que aderimos por inércia, por tradição, simplesmente porque sim. Mas, apesar disso, sentimo-la como algo que nos faz falta, algo que completa a nossa condição humana, algo que poderia dar um maior sentido às nossas vidas e por isso não a queremos perder. Ora esta altura, em que o Emílio parece estar, é a ocasião por excelência para recuperar, ou melhor, para adquirir a verdadeira Fé. E para isso devemos esquecer a nossa educação católica, devemos começar tudo de novo. E naturalmente pelas origens, pela Palavra de Deus, pelo Cristo dos Evangelhos. Se os lermos com abertura de espírito e de coração, sem ideias feitas, vamos descobrir lá coisas espantosas, belíssimas, transcendentes. Vamos descobrir lá, lendo simplesmente, que Deus não é nosso Senhor mas nosso Pai e que nos ama como Seus filhos. Vamos descobrir que:
"Ele nos formou à Sua imagem e semelhança, e enviou-nos o Seu Filho Unigénito, prometendo-nos o Reino dos Céus, que dará aos que O tiverem amado. Com toda a clemência e doçura, tal como um rei envia o rei seu filho, Ele O enviou não como o Deus que Ele era, mas sim como convinha que Ele fosse para os homens, para nos salvar pela persuasão, não pela violência, porque não há violência em Deus. Ele enviou-O para nos chamar para Ele, não para nos acusar: enviou-O porque nos amou, não para nos julgar" (Diogn.).
E percebendo a nossa qualidade de filhos amados de Deus, discernindo em nós, na nossa natureza, aquilo que é de matéria divina e a que chamamos alma, encontramos então a verdadeira Fé, uma fé que nos engrandece mas que nos torna humildes, uma fé que nos suaviza mas que nos torna fortes, uma fé que nos chama para junto Dele mas que nos ensina a viver, uma fé que nos faz saber amar e saber sofrer, uma fé que nos enche mas não de nós próprios, uma fé que nos alimenta e nos consome, uma fé que confia mas anseia.
Caro Emílio, a Fé é de tal modo uma benção que devemos lutar, até contra nós próprios, para voltar a tê-la de novo. Diz você que “não posso reencontrar a fé pelo raciocínio” e que talvez ela lhe surja se “a emulsão que é o meu "caldo" mental em ebulição, for expurgada de tudo o que é humanamente lógico”. Aí não concordo consigo. Para mim, o raciocínio e a lógica são também fundamentais para se alcançar a Fé. Só que esse raciocínio não leva a lado nenhum se se desenvolver em circuito fechado, sem substrato, nesse caldo mental que você menciona. Porém se esse raciocínio for aplicado à Verdade revelada por Cristo e fixada nas escrituras, esse raciocínio pode levar à Fé.
Há uma frase de Sto.Anselmo, já aqui citada e que, presumo, lhe dirá algo: “Não busco compreender para crer, mas creio, sim, para compreender. Creio, porque se não cresse, não chegaria nunca a compreender e, meu Deus, como quero compreender-Te!”.
A Fé que hoje eu tenho não é, como você diz, inabalável. Será porventura forte mas não o suficiente para que a minha vida seja coerente com ela, para que “crendo em Cristo, eu tenha a vida em Seu nome”. E essa incoerência causa-me um mal-estar que me leva muitas vezes a duvidar de mim como crente mas que, todavia, não me faz nunca pôr em causa a Fé em si mesma. Quer isto dizer que nos momentos mais negros é de mim próprio que duvido. Nunca de Deus.
Também eu fui educado como católico e todavia não é por isso que ainda o sou. Diria antes que é apesar disso que o sou. Aliás, a educação católica é algo que em rigor não existe. Não somos como os muçulmanos nem temos as madrassas que eles tem. A nossa chamada educação católica não é mais do que educação geral num ambiente exteriormente católico. Obviamente, a educação religiosa não deve servir para nos impôr a Fé. Isso simplesmente não é possível. Mas o que deveria fazer era pôr-nos minimamente em contacto com o conteúdo ou contexto histórico, filosófico, sociológico e cultural da nossa Fé. E é aí que a coisa falha normalmente. Senão como explicar que eu, tendo andado na catequese até aos 14 anos (e dela saí quando, embora não assumidamente, tinha já perdido a minha primeira fé), só já depois dos 30 é que percebi a simbologia do Génesis e a relação entre Antigo e Novo Testamentos, só depois dos 30 é que li os Evangelhos na íntegra, só perto dos 40 é que, como dizia S.Tomás de Aquino, comecei a ter alguma inteligibilidade na minha Fé. Mas não é sobre a educação católica que você me veio falar. É sobre a perda da Fé.
Eu conheço quem diga que perdeu a Fé mas aquilo que verdadeiramente perdeu foi a convicção de que tinha fé pois, verdadeiramente, nunca a teve ou já a perdera há muito. Volto ao meu caso pessoal: durante anos fingi a mim próprio que tinha fé e só a recuperei algum tempo depois de ter interiorizado que já não a tinha mais.
Quero com isto dizer o seguinte: quando pensamos que estamos a perder a fé devemos primeiro pensar como é a fé que ainda temos, devemos sobretudo pensar porque a temos. E as respostas são normalmente desanimadoras pois descobrimos muitas vezes que a nossa fé não tem uma base sólida, não tem raízes dentro de nós, é algo a que aderimos por inércia, por tradição, simplesmente porque sim. Mas, apesar disso, sentimo-la como algo que nos faz falta, algo que completa a nossa condição humana, algo que poderia dar um maior sentido às nossas vidas e por isso não a queremos perder. Ora esta altura, em que o Emílio parece estar, é a ocasião por excelência para recuperar, ou melhor, para adquirir a verdadeira Fé. E para isso devemos esquecer a nossa educação católica, devemos começar tudo de novo. E naturalmente pelas origens, pela Palavra de Deus, pelo Cristo dos Evangelhos. Se os lermos com abertura de espírito e de coração, sem ideias feitas, vamos descobrir lá coisas espantosas, belíssimas, transcendentes. Vamos descobrir lá, lendo simplesmente, que Deus não é nosso Senhor mas nosso Pai e que nos ama como Seus filhos. Vamos descobrir que:
"Ele nos formou à Sua imagem e semelhança, e enviou-nos o Seu Filho Unigénito, prometendo-nos o Reino dos Céus, que dará aos que O tiverem amado. Com toda a clemência e doçura, tal como um rei envia o rei seu filho, Ele O enviou não como o Deus que Ele era, mas sim como convinha que Ele fosse para os homens, para nos salvar pela persuasão, não pela violência, porque não há violência em Deus. Ele enviou-O para nos chamar para Ele, não para nos acusar: enviou-O porque nos amou, não para nos julgar" (Diogn.).
E percebendo a nossa qualidade de filhos amados de Deus, discernindo em nós, na nossa natureza, aquilo que é de matéria divina e a que chamamos alma, encontramos então a verdadeira Fé, uma fé que nos engrandece mas que nos torna humildes, uma fé que nos suaviza mas que nos torna fortes, uma fé que nos chama para junto Dele mas que nos ensina a viver, uma fé que nos faz saber amar e saber sofrer, uma fé que nos enche mas não de nós próprios, uma fé que nos alimenta e nos consome, uma fé que confia mas anseia.
Caro Emílio, a Fé é de tal modo uma benção que devemos lutar, até contra nós próprios, para voltar a tê-la de novo. Diz você que “não posso reencontrar a fé pelo raciocínio” e que talvez ela lhe surja se “a emulsão que é o meu "caldo" mental em ebulição, for expurgada de tudo o que é humanamente lógico”. Aí não concordo consigo. Para mim, o raciocínio e a lógica são também fundamentais para se alcançar a Fé. Só que esse raciocínio não leva a lado nenhum se se desenvolver em circuito fechado, sem substrato, nesse caldo mental que você menciona. Porém se esse raciocínio for aplicado à Verdade revelada por Cristo e fixada nas escrituras, esse raciocínio pode levar à Fé.
Há uma frase de Sto.Anselmo, já aqui citada e que, presumo, lhe dirá algo: “Não busco compreender para crer, mas creio, sim, para compreender. Creio, porque se não cresse, não chegaria nunca a compreender e, meu Deus, como quero compreender-Te!”.
A Fé que hoje eu tenho não é, como você diz, inabalável. Será porventura forte mas não o suficiente para que a minha vida seja coerente com ela, para que “crendo em Cristo, eu tenha a vida em Seu nome”. E essa incoerência causa-me um mal-estar que me leva muitas vezes a duvidar de mim como crente mas que, todavia, não me faz nunca pôr em causa a Fé em si mesma. Quer isto dizer que nos momentos mais negros é de mim próprio que duvido. Nunca de Deus.