domingo, dezembro 12, 2004
ALEXANDRIA, ANNO DOMINUM
Conversa de Assuero, judeu de Alexandria, filho de Mardoqueu, neto de Hiskias, futuramente o lendário Judeu Errante, com Queremon, sacerdote de Ísis:
«Queremon, depois de me ter feito sentar perto dele, juntou as mãos, recolheu-se e pronunciou a seguinte oração na lígua vulgar do Baixo Egipto:
Ó meu Deus, pai de tudo,
Deus santo que te manifestas aos teus,
Tu és o santo que tudo fizeste pela Palavra,
Tu és o santo cuja natureza é a imagem,
Tu és o santo não criado pela natureza,
Tu és o santo mais poderoso que toda a potestade,
Tu és o santo mais excelso que toda a elevação,
Tu és o santo superior a todo o louvor.
Recebe o sacrifício de acção de graças do meu coração
e das minhas palavras
Tu és inefável e o silêncio é teu apanágio.
Tu abolistes os erros contrários ao verdadeiro conhecimento.
Aprova-me, confirma-me e faz participar nesta graça
todos os que ainda se encontram na ignorância, tanto quanto
todos os que já te conhecem e que por isso mesmo
são meus irmãos e teus filhos.
Creio em ti e confesso,
Ascendo à vida assim como à luz,
Quero participar na tua santidade,
E és tu quem me inspira esse desejo.
Quando Queremon terminou a oração egípcia, voltou-se para mim e disse: «Meu filho, como estais a ver, também nós conhecemos um Deus que criou o mundo através da Palavra. A oração que acabais de escutar é retirada do Poimandrés, livro que nós atribuímos a Thot três vezes grande, cujas obras são levadas em procissão em todas as nossas festas. Existem entre nós vinte e seis mil rolos, que passam por terem sido escritos por este filósofo que viveu há dois mil anos. Mas como só os nossos sacerdotes podem executar cópias deles, é possível que tenham acrescentado mais algumas coisas. (...) Como todas as coisas deste mundo, as religiões estão submetidas a uma força lenta e contínua, que tende incessantemente a alterar a sua forma e a sua natureza, de tal maneira que, ao fim de alguns séculos, acontece que uma reigião que se julga ter sido sempre igual acaba por oferecer à crença dos homens outras opiniões: alegorias em cujo sentido já não se consegue penetrar, dogmas em que já só se acredita por metade. (...) Recomendo-vos em primeiro lugar que não vos agarreis muito nem à imagem nem ao emblema, mas que vos dediqueis a captar o espírito de todas as coisas. Assim, o barro representa tudo o que é material. Um deus sentado numa flor de lótus, flutuando sobre o barro, representa o pensamento que repousa sobre a matéria sem a tocar. É o emblema de que se serviu o vosso legislador [Moisés], quando afirmou que o espírito de Deus se movia sobre as águas.»
(Manuscrito encontrado em Saragoça (volume 2), Jan Potocki, Cavalo de Ferro editores)
«Queremon, depois de me ter feito sentar perto dele, juntou as mãos, recolheu-se e pronunciou a seguinte oração na lígua vulgar do Baixo Egipto:
Ó meu Deus, pai de tudo,
Deus santo que te manifestas aos teus,
Tu és o santo que tudo fizeste pela Palavra,
Tu és o santo cuja natureza é a imagem,
Tu és o santo não criado pela natureza,
Tu és o santo mais poderoso que toda a potestade,
Tu és o santo mais excelso que toda a elevação,
Tu és o santo superior a todo o louvor.
Recebe o sacrifício de acção de graças do meu coração
e das minhas palavras
Tu és inefável e o silêncio é teu apanágio.
Tu abolistes os erros contrários ao verdadeiro conhecimento.
Aprova-me, confirma-me e faz participar nesta graça
todos os que ainda se encontram na ignorância, tanto quanto
todos os que já te conhecem e que por isso mesmo
são meus irmãos e teus filhos.
Creio em ti e confesso,
Ascendo à vida assim como à luz,
Quero participar na tua santidade,
E és tu quem me inspira esse desejo.
Quando Queremon terminou a oração egípcia, voltou-se para mim e disse: «Meu filho, como estais a ver, também nós conhecemos um Deus que criou o mundo através da Palavra. A oração que acabais de escutar é retirada do Poimandrés, livro que nós atribuímos a Thot três vezes grande, cujas obras são levadas em procissão em todas as nossas festas. Existem entre nós vinte e seis mil rolos, que passam por terem sido escritos por este filósofo que viveu há dois mil anos. Mas como só os nossos sacerdotes podem executar cópias deles, é possível que tenham acrescentado mais algumas coisas. (...) Como todas as coisas deste mundo, as religiões estão submetidas a uma força lenta e contínua, que tende incessantemente a alterar a sua forma e a sua natureza, de tal maneira que, ao fim de alguns séculos, acontece que uma reigião que se julga ter sido sempre igual acaba por oferecer à crença dos homens outras opiniões: alegorias em cujo sentido já não se consegue penetrar, dogmas em que já só se acredita por metade. (...) Recomendo-vos em primeiro lugar que não vos agarreis muito nem à imagem nem ao emblema, mas que vos dediqueis a captar o espírito de todas as coisas. Assim, o barro representa tudo o que é material. Um deus sentado numa flor de lótus, flutuando sobre o barro, representa o pensamento que repousa sobre a matéria sem a tocar. É o emblema de que se serviu o vosso legislador [Moisés], quando afirmou que o espírito de Deus se movia sobre as águas.»
(Manuscrito encontrado em Saragoça (volume 2), Jan Potocki, Cavalo de Ferro editores)