quinta-feira, abril 28, 2005
Gaivotas em terra
Há um ano a fertilizar o solo. Assim como uma espécie de Nitrato do Chile. E parece que é para ficarem. Graças a Deus.
sexta-feira, abril 22, 2005
E agora, Joseph?
1- Da saudade que fica
Sobre João Paulo II já foi dito tudo o que havia dizer e muito mais ainda. Ele que talvez tenha querido oferecer o seu sofrimento terminal para remissão daquilo em que, inevitavelmente, a grande glória do seu papado lhe maculou um pouco a alma, ele acabou por, depois de morto, voltar aos píncaros da adoração dos católicos e da admiração dos não católicos. Muitos dos que assistiram, com satisfação ou amargura, àqueles dias em que todos os olhos do mundo convergiram para o Vaticano, em que 5 milhões de pessoas, crentes ou não crentes, grandes deste mundo ou simples anónimos, foram a Roma prestar o seu tributo à memória daquele grande papa, grande crente e grande homem, ficaram a pensar que este preito triunfal é sinal de retoma da influência da Igreja Católica no mundo de hoje. Numa estranha identidade, ouvi católicos devotos e ateus impenitentes a falarem ambos de sinais de restauração do poder da Igreja!
Na minha modesta opinião estão ambos enganados, enganadíssimos. Na minha modesta opinião, toda esta enorme atenção global à agonia e morte de João Paulo II deveu-se essencialmente ao imenso carisma, prestígio e simpatia que rodeavam Karol Wojtila. Neste tempo de governantes anões, a figura dele agigantava-se verdadeiramente. Ele era verdadeiramente o único verdadeiro líder mundial. Quando ele ascendeu ao papado não era assim mas, desde esses tempos longínquos, Reagan deu lugar a Bush, Miterrand a Chirac, Gorbachev a Putin, Kohl a Schroeder, Thatcher a Blair, Deng Xiao Ping a um chinês qualquer de que não me lembro o nome. E por aí adiante. João Paulo II, esse continuou num crescendo de prestígio e influência, acumulando uma autoridade moral imensa, fruto duma coerência única neste mundo incoerente. E por cima disso tudo, possuía uma coisa ainda mais magnética que a autoridade e o prestígio: João Paulo II era alguém extraordinariamente simpático. Desde os seus tempos iniciais em que impunha uma fortíssima presença física até aos tempos derradeiros em que mostrava uma fragilidade tocante, o olhar de João Paulo II, o seu sorriso, faziam inumeráveis milhões de pessoas achar que para além do seu rigor doutrinal, muito acima disso, havia nele um amor profundo pela Humanidade. Lia-se no seu rosto aquele milk of human kindness que no fundo é o que mais nos importa. Por causa disso os católicos, todos eles, concordando ou não com ele, seguiram-no e aplaudiram-no. Por causa disso os crentes das outras religiões respeitaram-no e acorreram a ele. No fundo, gostávamos todos dele pois ele alguém verdadeiramente gostável, logo desde a primeira impressão. Isso apaga ou atenua divergências, ressentimentos, alheamentos. No fundo, todos os católicos, mesmo os mais amargurados com o seu rumo doutrinal, se orgulhavam de o ter como papa. E quase todos os restantes, crentes e não crentes, lhe deram a sua afeição. Usando um termo feliz que o meu amigo CC trouxe há dias na Terra, da Alegria eu diria que João Paulo II, mesmo que possa não ter estado sempre em Graça, pôde e soube gozar dum estado de graça permanente durante todo o seu papado.
Quero com isto dizer uma coisa simples: em termos mundanos João Paulo II transcendeu e continuará largamente a transcender a Igreja Católica. Duvido muito que nos 26 anos do seu glorioso papado, a influência da Igreja tenha aumentado. Pior ainda: duvido ainda mais que a influência do cristianismo não tenha descido muito. Penso que não por culpa dele mas por causa duma forte tendência sociológica que nem ele conseguiu evitar, embora talvez tenha atenuado. E a que a Igreja Católica, assim como as outras Igrejas Cristãs, não tem sabido responder.
E, agora que ele desapareceu e foi substituído, bom será que a sua memória tão marcante, que os holofotes do mundo apontados aos faustos já quase esquecidos do Vaticano, que aquilo que alguns chamam baixinho de “oportunidade mediática”, não sejam tudo isso razões para um novo triunfalismo da Igreja Católica. Triunfalismo que sempre lhe ficou tão mal e que, neste particular momento, seria tão absurdamente inapropriado.
2- Da surpresa anunciada
Já o seu sucessor, o cardeal Joseph Ratzinger, duvido que o mundo lhe conceda sequer um pouco de estado de graça. João Paulo II, tão coerente na ortodoxia doutrinal como no resto, encontrou no seu Prefeito da Congregação da Doutrina e da Fé, um homem utilíssimo e dedicadíssimo que assumiu, não se sabe se com gosto, o peso e também o odioso mediático de ser ele a andar no terreno a catar da Santa Madre Igreja todas as heterodoxias, heresias e os tais famosos relativismos. E enquanto Ratzinger vigiava atentamente, João Paulo II pôde prosseguir o seu ministério em campos muito mais espirituais, pastorais e humanos.
Devo aqui dizer que eu, que me considero um católico livre (progressista é um termo tão safado...), acho sinceramente que a Igreja precisou, precisa e precisará sempre de pessoas como o Prefeito Ratzinger. A fé cristã, sobretudo a católica, sendo muito mais espiritual do que normativa, assentando muito mais numa Palavra e numa Vida do que num código de mandamentos e proibições, sendo uma fé a que se adere tanto pela razão como pela emoção como pela tradição, é uma fé que precisamente por essa sua natureza que eu tanto amo, necessita das peias de alguma regulação e ordenação. É um papel com o qual não simpatizo mas que reconheço absolutamente que tem de ser feito e bem feito por alguém. Caso contrário, e sinto na pele o que estou a dizer, a fé católica dispersa-se capilarmente por mil percursos especulativos que, reconheço, podem levar a perder-se algo que não pode absolutamente ser perdido, algo que não sei definir mas que é o essencial da fé em Cristo.
Será melhor dar um exemplo: a teologia da libertação. Ela apareceu num contexto muito próprio em que a Igreja não estava decididamente a dar resposta ao sofrimento de milhões dos seus filhos, esmagados por sistemas políticos oligárquicos e sem alma. Leonardo Boff é um homem que admiro imenso, um teólogo profundíssimo, um enorme crente, uma alma verdadeiramente em Cristo. Quase tudo o que disse e diz a teologia da libertação é justo e está de acordo com a palavra de Cristo. Todavia ela acabou a ser fortemente combatida pelo Vaticano, pelo próprio Ratzinger, que silenciou abruptamente os seus teólogos. Durante muito tempo não percebi porquê. O facto da teologia da libertação habitar paredes meias com a ideologia marxista não me parecia uma razão muito cristã, pois não se estava a confiar na força da fé. Até pelo contrário: ao terem-na rejeitado tão brutalmente, empurraram muitos bons crentes para o vazio do ateísmo e para a ilusão do marxismo. Mais tarde li documentos dessa teologia e só então percebi, ou penso que percebi, as razões de Ratzinger. A teologia da libertação assume como meta central a obtenção da justiça na terra e fá-lo socorrendo-se da mensagem de Cristo. Faz bem porque Cristo mais do que justo, era Bom, amava-nos tanto que deu a Vida por nós. Cristo combateu as hipocrisias dos fariseus, combateu as injustiças dos sacerdotes, combateu a ausência de compaixão do povo. Por isso é bom e é justo que seja invocado pelos que se querem colocar ao lado dos pequeninos deste mundo, protegendo-os da crueldade, injustiça e indiferença deste mundo de hoje e de ontem. O trágico e perigoso da teologia da libertação é que, não ela em si mesma mas muitos dos seus seguidores, ao sentirem Cristo como modelo, acabam muitas vezes por reduzi-lo a mais um justiceiro deste mundo, a um simples revolucionário, a um profeta da justiça e da solidariedade, a um companheiro de ontem da sua luta de hoje. E Cristo é isso mesmo. Só que é muito mais do que isso: Cristo é Deus, Filho de Deus, Verbo de Deus. O facto de ele nos ter sido enviado por Deus "não como o Deus que Ele era, mas sim como convinha que Ele fosse para os homens", para morrer por nós, esse simples e misterioso facto, é o núcleo central da nossa Fé. Esquecer isto é reduzir o Cristianismo a uma ideologia mais, talvez a melhor, mas não mais do que isso. É esquecer Deus, a Salvação, a Graça. Como dizem cristãos de cujo conservadorismo não gosto, é esquecer a centralidade de Cristo. A teologia da libertação não proclamava isso mas abria-lhe largo caminho. E por isso foi reprimida.
Neste exemplo prático consigo talvez explicar porque é, não gostando da rigidez dogmática nem da secura escolástica destes Prefeitos da Fé, concordo ainda assim com a sua existência e labor. São desagradáveis mas necessários. É um trabalho feio mas alguém tem de o fazer. E, sobretudo, na Igreja povo de Deus e comunidade de crentes, eles não tem mais importância de que a lhes quisermos dar. Como católico, envolvido num movimento católico, nunca me senti inibido, limitado, coartado, reprimido pela ortodoxia do Cardeal Ratzinger. E menos ainda senti a Igreja prejudicada e diminuída pela sua zelosa actividade.
E volto então a ele. Sendo ele o alter ego de João Paulo II, sendo ele há muito o governante fáctico do Vaticano, sendo ele o expoente máximo da unidade doutrinal da Igreja, é a coisa mais natural do mundo que a Igreja, pelos seus cardeais, o tenha escolhido como sucessor de Pedro e de João Paulo II. Talvez tenha sido inspiração do Espírito Santo. De certeza foi gratidão, orfandade do grande Wojtila, desejo de estabilidade, receio do que aí vem sobretudo na Europa, berço da Igreja. Sempre assim foi: em tempos de incerteza aposta-se no certo em vez do incerto.
E é por isso que pensando agora, confortavelmente a posteriori, vejo que a eleição de Ratzinger só foi uma surpresa porque grande parte de nós, eu incluído, não queríamos que ela acontecesse. Para os outros não foi surpresa porque a desejavam. O padre João Seabra é certamente mais inteligente do que eu mas não terá poderes divinatórios nem ligação directa à Capela Sistina.
Aqui, como em tudo o resto, a vontade sobrepôe-se à objectividade. A verdade é que não. E é por isso que me pergunto sinceramente se esta escolha terá sido ou não a melhor.
3- Klein aber fein
Ora, reconhecendo que Ratzinger foi um excelente embora impopular prefeito da doutrina e da Fé, parecem-me evidente que ele terá grandes dificuldades enquanto Papa Bento XVI. Achei interessante ouvir irmãos meus na fé, com aquele arranque de esperança que é tão católico, dizerem “morreu o cardeal Ratzinger, viva o papa Bento XVI!”. Assim como que uma transubstanciação da pessoa pela obra e graça do Espírito Santo...Sabemos bem que o Espírito Santo só actua em nós se O deixarmos. E observando bem Joseph Ratzinger, hoje Bento XVI, ouvindo o que ele disse enquanto Joseph e o que já disse enquanto Bento, parece-me altamente improvável que ele mude ou queira sequer mudar. Por ter 78 anos, por ser alemão (desculpa lá, Lutz), sobretudo pela profissão que teve estes últimos anos. O trabalho de guardião é terrível. Muitas vezes é mais livre o prisioneiro do que o seu carcereiro. O trabalho de guardião seca a esperança, cristaliza o pensamento, reduz a humanidade. É, como disse atrás, um trabalho necessário mas duro, mais ainda para quem o faz do que para quem o sofre. É duplamente terrível quando uma grande inteligência o faz ver que ter zelado tanto pela protecção da Verdade de Cristo acabou por não o aproximar Dele. Nesse sentido vejo até Ratzinger como o herói anti-herói, como alguém que sacrificou tudo, até o seu amor pela Verdade, uma Verdade que é sobretudo Amor. Admiro-o mas lamento-o e, agora que é papa, rezo por ele.
Mas duvido sinceramente que possa vir a ser um bom papa. Sobretudo por vir a seguir a um tão grande papa, alguém que elevou a bitola do pontificado para níveis imensos, alguém que projectou a função para todo o mundo, para além da Igreja. Mas também porque as características que fizeram dele um fantástico lugar-tenente de João Paulo II não são as características que hoje são precisas para se ser um bom papa. Nem vou falar do carisma, da imagem, da doçura da Fé, do espírito pregador, da forte ideia de apostolado. Falo apenas da falta daquilo que nos arrastava para Karol Wojtila: o tal milk of human kindness, uma tão grande dádiva de Deus aos homens que não consigo discernir naquele rosto.
Há dias vi na RTP1 uma entrevista antiga do cardeal Ratzinger a uma rádio italiana. Durou menos de meia hora, nela não vi senão inteligência, determinação, certeza, sabedoria e secura. Quando João Paulo II, acabado de eleger veio à janela de S.Pedro para falar pela primeira vez aos fiéis, disse uma coisa espantosa e poderosíssima, que norteou todo o seu pontificado: não tenhais medo! Medo de ser cristão, medo de aceitar Cristo nas nossas vidas, medo de O proclamar aos outros. Se nada mais tivesse acontecido, essa frase teria valido por tudo o resto. Mas, em igual circunstância, Bento XVI apenas prometeu humildade e trabalho, que é aquilo que sempre deu à Igreja. Ao escrever isto sinto que estou a ser injustíssimo com a sua pessoa. E estou-o de facto. Mas estou a falar dele enquanto papa.
Injusto ou não, é bom reconhecer que estou a falar de ouvido, sem verdadeiro conhecimento de causa, baseado em impressões. Mas são impressões fortes.
E quero dizer outra coisa. Apesar de tudo que disse atrás, estou optimista!!!
Pois posso estar completamente enganado e Joseph Ratzinger, sendo a pessoa que é e sempre foi, poder vir a ser também um grande papa. E posso estar completamente certo e Joseph Ratzinger vir a confirmar os receios que nele tantos depositam.
Acontece que a minha fé em Cristo vive com a minha fé na Igreja Católica, que tantos erros cometeu ao longo de 2000 anos mas continua a conter e a oferecer ao mundo a Palavra de Cristo. Continua a ser detentora duma profunda sabedoria. E estou absolutamente certo de que, do mesmo modo que o brilho e carisma de João Paulo II ofuscaram a vida e desenvolvimento espiritual das comunidades eclesiais de base, a eventual falta de carisma ou estreitamamento doutrinal de Bento XVI, as fará refortalecer. A Igreja, enquanto realidade em permanente construção, já teve quase 300 papas, já cometeu erros terríveis e já defendeu coisas fundamentais, já foi centralista, já foi nacionalista. Esta mesma Igreja está hoje perante desafios tremendos. Desafios que não são reconhecidos e percebidos duma forma única. Mas com mais papa ou menos papa, sempre com os bispos e com os movimentos de fiéis, ela continuará a ter e a ser uma resposta.
Digo pois, sem qualquer ironia: viva o Papa Bento XVI! não tenhais medo!
Sobre João Paulo II já foi dito tudo o que havia dizer e muito mais ainda. Ele que talvez tenha querido oferecer o seu sofrimento terminal para remissão daquilo em que, inevitavelmente, a grande glória do seu papado lhe maculou um pouco a alma, ele acabou por, depois de morto, voltar aos píncaros da adoração dos católicos e da admiração dos não católicos. Muitos dos que assistiram, com satisfação ou amargura, àqueles dias em que todos os olhos do mundo convergiram para o Vaticano, em que 5 milhões de pessoas, crentes ou não crentes, grandes deste mundo ou simples anónimos, foram a Roma prestar o seu tributo à memória daquele grande papa, grande crente e grande homem, ficaram a pensar que este preito triunfal é sinal de retoma da influência da Igreja Católica no mundo de hoje. Numa estranha identidade, ouvi católicos devotos e ateus impenitentes a falarem ambos de sinais de restauração do poder da Igreja!
Na minha modesta opinião estão ambos enganados, enganadíssimos. Na minha modesta opinião, toda esta enorme atenção global à agonia e morte de João Paulo II deveu-se essencialmente ao imenso carisma, prestígio e simpatia que rodeavam Karol Wojtila. Neste tempo de governantes anões, a figura dele agigantava-se verdadeiramente. Ele era verdadeiramente o único verdadeiro líder mundial. Quando ele ascendeu ao papado não era assim mas, desde esses tempos longínquos, Reagan deu lugar a Bush, Miterrand a Chirac, Gorbachev a Putin, Kohl a Schroeder, Thatcher a Blair, Deng Xiao Ping a um chinês qualquer de que não me lembro o nome. E por aí adiante. João Paulo II, esse continuou num crescendo de prestígio e influência, acumulando uma autoridade moral imensa, fruto duma coerência única neste mundo incoerente. E por cima disso tudo, possuía uma coisa ainda mais magnética que a autoridade e o prestígio: João Paulo II era alguém extraordinariamente simpático. Desde os seus tempos iniciais em que impunha uma fortíssima presença física até aos tempos derradeiros em que mostrava uma fragilidade tocante, o olhar de João Paulo II, o seu sorriso, faziam inumeráveis milhões de pessoas achar que para além do seu rigor doutrinal, muito acima disso, havia nele um amor profundo pela Humanidade. Lia-se no seu rosto aquele milk of human kindness que no fundo é o que mais nos importa. Por causa disso os católicos, todos eles, concordando ou não com ele, seguiram-no e aplaudiram-no. Por causa disso os crentes das outras religiões respeitaram-no e acorreram a ele. No fundo, gostávamos todos dele pois ele alguém verdadeiramente gostável, logo desde a primeira impressão. Isso apaga ou atenua divergências, ressentimentos, alheamentos. No fundo, todos os católicos, mesmo os mais amargurados com o seu rumo doutrinal, se orgulhavam de o ter como papa. E quase todos os restantes, crentes e não crentes, lhe deram a sua afeição. Usando um termo feliz que o meu amigo CC trouxe há dias na Terra, da Alegria eu diria que João Paulo II, mesmo que possa não ter estado sempre em Graça, pôde e soube gozar dum estado de graça permanente durante todo o seu papado.
Quero com isto dizer uma coisa simples: em termos mundanos João Paulo II transcendeu e continuará largamente a transcender a Igreja Católica. Duvido muito que nos 26 anos do seu glorioso papado, a influência da Igreja tenha aumentado. Pior ainda: duvido ainda mais que a influência do cristianismo não tenha descido muito. Penso que não por culpa dele mas por causa duma forte tendência sociológica que nem ele conseguiu evitar, embora talvez tenha atenuado. E a que a Igreja Católica, assim como as outras Igrejas Cristãs, não tem sabido responder.
E, agora que ele desapareceu e foi substituído, bom será que a sua memória tão marcante, que os holofotes do mundo apontados aos faustos já quase esquecidos do Vaticano, que aquilo que alguns chamam baixinho de “oportunidade mediática”, não sejam tudo isso razões para um novo triunfalismo da Igreja Católica. Triunfalismo que sempre lhe ficou tão mal e que, neste particular momento, seria tão absurdamente inapropriado.
2- Da surpresa anunciada
Já o seu sucessor, o cardeal Joseph Ratzinger, duvido que o mundo lhe conceda sequer um pouco de estado de graça. João Paulo II, tão coerente na ortodoxia doutrinal como no resto, encontrou no seu Prefeito da Congregação da Doutrina e da Fé, um homem utilíssimo e dedicadíssimo que assumiu, não se sabe se com gosto, o peso e também o odioso mediático de ser ele a andar no terreno a catar da Santa Madre Igreja todas as heterodoxias, heresias e os tais famosos relativismos. E enquanto Ratzinger vigiava atentamente, João Paulo II pôde prosseguir o seu ministério em campos muito mais espirituais, pastorais e humanos.
Devo aqui dizer que eu, que me considero um católico livre (progressista é um termo tão safado...), acho sinceramente que a Igreja precisou, precisa e precisará sempre de pessoas como o Prefeito Ratzinger. A fé cristã, sobretudo a católica, sendo muito mais espiritual do que normativa, assentando muito mais numa Palavra e numa Vida do que num código de mandamentos e proibições, sendo uma fé a que se adere tanto pela razão como pela emoção como pela tradição, é uma fé que precisamente por essa sua natureza que eu tanto amo, necessita das peias de alguma regulação e ordenação. É um papel com o qual não simpatizo mas que reconheço absolutamente que tem de ser feito e bem feito por alguém. Caso contrário, e sinto na pele o que estou a dizer, a fé católica dispersa-se capilarmente por mil percursos especulativos que, reconheço, podem levar a perder-se algo que não pode absolutamente ser perdido, algo que não sei definir mas que é o essencial da fé em Cristo.
Será melhor dar um exemplo: a teologia da libertação. Ela apareceu num contexto muito próprio em que a Igreja não estava decididamente a dar resposta ao sofrimento de milhões dos seus filhos, esmagados por sistemas políticos oligárquicos e sem alma. Leonardo Boff é um homem que admiro imenso, um teólogo profundíssimo, um enorme crente, uma alma verdadeiramente em Cristo. Quase tudo o que disse e diz a teologia da libertação é justo e está de acordo com a palavra de Cristo. Todavia ela acabou a ser fortemente combatida pelo Vaticano, pelo próprio Ratzinger, que silenciou abruptamente os seus teólogos. Durante muito tempo não percebi porquê. O facto da teologia da libertação habitar paredes meias com a ideologia marxista não me parecia uma razão muito cristã, pois não se estava a confiar na força da fé. Até pelo contrário: ao terem-na rejeitado tão brutalmente, empurraram muitos bons crentes para o vazio do ateísmo e para a ilusão do marxismo. Mais tarde li documentos dessa teologia e só então percebi, ou penso que percebi, as razões de Ratzinger. A teologia da libertação assume como meta central a obtenção da justiça na terra e fá-lo socorrendo-se da mensagem de Cristo. Faz bem porque Cristo mais do que justo, era Bom, amava-nos tanto que deu a Vida por nós. Cristo combateu as hipocrisias dos fariseus, combateu as injustiças dos sacerdotes, combateu a ausência de compaixão do povo. Por isso é bom e é justo que seja invocado pelos que se querem colocar ao lado dos pequeninos deste mundo, protegendo-os da crueldade, injustiça e indiferença deste mundo de hoje e de ontem. O trágico e perigoso da teologia da libertação é que, não ela em si mesma mas muitos dos seus seguidores, ao sentirem Cristo como modelo, acabam muitas vezes por reduzi-lo a mais um justiceiro deste mundo, a um simples revolucionário, a um profeta da justiça e da solidariedade, a um companheiro de ontem da sua luta de hoje. E Cristo é isso mesmo. Só que é muito mais do que isso: Cristo é Deus, Filho de Deus, Verbo de Deus. O facto de ele nos ter sido enviado por Deus "não como o Deus que Ele era, mas sim como convinha que Ele fosse para os homens", para morrer por nós, esse simples e misterioso facto, é o núcleo central da nossa Fé. Esquecer isto é reduzir o Cristianismo a uma ideologia mais, talvez a melhor, mas não mais do que isso. É esquecer Deus, a Salvação, a Graça. Como dizem cristãos de cujo conservadorismo não gosto, é esquecer a centralidade de Cristo. A teologia da libertação não proclamava isso mas abria-lhe largo caminho. E por isso foi reprimida.
Neste exemplo prático consigo talvez explicar porque é, não gostando da rigidez dogmática nem da secura escolástica destes Prefeitos da Fé, concordo ainda assim com a sua existência e labor. São desagradáveis mas necessários. É um trabalho feio mas alguém tem de o fazer. E, sobretudo, na Igreja povo de Deus e comunidade de crentes, eles não tem mais importância de que a lhes quisermos dar. Como católico, envolvido num movimento católico, nunca me senti inibido, limitado, coartado, reprimido pela ortodoxia do Cardeal Ratzinger. E menos ainda senti a Igreja prejudicada e diminuída pela sua zelosa actividade.
E volto então a ele. Sendo ele o alter ego de João Paulo II, sendo ele há muito o governante fáctico do Vaticano, sendo ele o expoente máximo da unidade doutrinal da Igreja, é a coisa mais natural do mundo que a Igreja, pelos seus cardeais, o tenha escolhido como sucessor de Pedro e de João Paulo II. Talvez tenha sido inspiração do Espírito Santo. De certeza foi gratidão, orfandade do grande Wojtila, desejo de estabilidade, receio do que aí vem sobretudo na Europa, berço da Igreja. Sempre assim foi: em tempos de incerteza aposta-se no certo em vez do incerto.
E é por isso que pensando agora, confortavelmente a posteriori, vejo que a eleição de Ratzinger só foi uma surpresa porque grande parte de nós, eu incluído, não queríamos que ela acontecesse. Para os outros não foi surpresa porque a desejavam. O padre João Seabra é certamente mais inteligente do que eu mas não terá poderes divinatórios nem ligação directa à Capela Sistina.
Aqui, como em tudo o resto, a vontade sobrepôe-se à objectividade. A verdade é que não. E é por isso que me pergunto sinceramente se esta escolha terá sido ou não a melhor.
3- Klein aber fein
Ora, reconhecendo que Ratzinger foi um excelente embora impopular prefeito da doutrina e da Fé, parecem-me evidente que ele terá grandes dificuldades enquanto Papa Bento XVI. Achei interessante ouvir irmãos meus na fé, com aquele arranque de esperança que é tão católico, dizerem “morreu o cardeal Ratzinger, viva o papa Bento XVI!”. Assim como que uma transubstanciação da pessoa pela obra e graça do Espírito Santo...Sabemos bem que o Espírito Santo só actua em nós se O deixarmos. E observando bem Joseph Ratzinger, hoje Bento XVI, ouvindo o que ele disse enquanto Joseph e o que já disse enquanto Bento, parece-me altamente improvável que ele mude ou queira sequer mudar. Por ter 78 anos, por ser alemão (desculpa lá, Lutz), sobretudo pela profissão que teve estes últimos anos. O trabalho de guardião é terrível. Muitas vezes é mais livre o prisioneiro do que o seu carcereiro. O trabalho de guardião seca a esperança, cristaliza o pensamento, reduz a humanidade. É, como disse atrás, um trabalho necessário mas duro, mais ainda para quem o faz do que para quem o sofre. É duplamente terrível quando uma grande inteligência o faz ver que ter zelado tanto pela protecção da Verdade de Cristo acabou por não o aproximar Dele. Nesse sentido vejo até Ratzinger como o herói anti-herói, como alguém que sacrificou tudo, até o seu amor pela Verdade, uma Verdade que é sobretudo Amor. Admiro-o mas lamento-o e, agora que é papa, rezo por ele.
Mas duvido sinceramente que possa vir a ser um bom papa. Sobretudo por vir a seguir a um tão grande papa, alguém que elevou a bitola do pontificado para níveis imensos, alguém que projectou a função para todo o mundo, para além da Igreja. Mas também porque as características que fizeram dele um fantástico lugar-tenente de João Paulo II não são as características que hoje são precisas para se ser um bom papa. Nem vou falar do carisma, da imagem, da doçura da Fé, do espírito pregador, da forte ideia de apostolado. Falo apenas da falta daquilo que nos arrastava para Karol Wojtila: o tal milk of human kindness, uma tão grande dádiva de Deus aos homens que não consigo discernir naquele rosto.
Há dias vi na RTP1 uma entrevista antiga do cardeal Ratzinger a uma rádio italiana. Durou menos de meia hora, nela não vi senão inteligência, determinação, certeza, sabedoria e secura. Quando João Paulo II, acabado de eleger veio à janela de S.Pedro para falar pela primeira vez aos fiéis, disse uma coisa espantosa e poderosíssima, que norteou todo o seu pontificado: não tenhais medo! Medo de ser cristão, medo de aceitar Cristo nas nossas vidas, medo de O proclamar aos outros. Se nada mais tivesse acontecido, essa frase teria valido por tudo o resto. Mas, em igual circunstância, Bento XVI apenas prometeu humildade e trabalho, que é aquilo que sempre deu à Igreja. Ao escrever isto sinto que estou a ser injustíssimo com a sua pessoa. E estou-o de facto. Mas estou a falar dele enquanto papa.
Injusto ou não, é bom reconhecer que estou a falar de ouvido, sem verdadeiro conhecimento de causa, baseado em impressões. Mas são impressões fortes.
E quero dizer outra coisa. Apesar de tudo que disse atrás, estou optimista!!!
Pois posso estar completamente enganado e Joseph Ratzinger, sendo a pessoa que é e sempre foi, poder vir a ser também um grande papa. E posso estar completamente certo e Joseph Ratzinger vir a confirmar os receios que nele tantos depositam.
Acontece que a minha fé em Cristo vive com a minha fé na Igreja Católica, que tantos erros cometeu ao longo de 2000 anos mas continua a conter e a oferecer ao mundo a Palavra de Cristo. Continua a ser detentora duma profunda sabedoria. E estou absolutamente certo de que, do mesmo modo que o brilho e carisma de João Paulo II ofuscaram a vida e desenvolvimento espiritual das comunidades eclesiais de base, a eventual falta de carisma ou estreitamamento doutrinal de Bento XVI, as fará refortalecer. A Igreja, enquanto realidade em permanente construção, já teve quase 300 papas, já cometeu erros terríveis e já defendeu coisas fundamentais, já foi centralista, já foi nacionalista. Esta mesma Igreja está hoje perante desafios tremendos. Desafios que não são reconhecidos e percebidos duma forma única. Mas com mais papa ou menos papa, sempre com os bispos e com os movimentos de fiéis, ela continuará a ter e a ser uma resposta.
Digo pois, sem qualquer ironia: viva o Papa Bento XVI! não tenhais medo!
(texto revisto sáb. 23 abr.17h50)
quinta-feira, abril 21, 2005
Longa se torna a espera
Um leitor da Terra da Alegria, Fernando Belo de seu nome, mandou-me um mail sobre aquelas minhas pomposas reflexões pascais. Um mail muito interessante, falando sobre os tempos iniciais do Cristianismo, sobre Paulo de Tarso e os outros, sobre as suas dissenções de que resultaram quase tudo aquilo que o cristianismo pensa de si próprio. Eu não vou responder já ao Fernando, cuja erudição é tão superior à minha. Se ele me permite vou acabar de ler finalmente o «Aborto de Deus» de Alain Decaux.
Mas o Fernando, no seu mail, relembra-me uma coisa difícil de resolver: a noção fortíssima que esses primeiros cristãos tinham da parusia iminente, do fim dos tempos com o regresso triunfal do Cristo Messias. Até hoje. Caro Fernando, vou pensar um bocado mais nisso e depois respondo-lhe se puder. Entretanto você foi mauzinho, você desenterrou uma frase de Alfred de Loisy que eu já há muito varrera para debaixo do tapete: "os cristãos esperavam o Reino de Deus e foi a Igreja que veio".
Voltaremos pois a conversar, se você tiver vontade.
Mas o Fernando, no seu mail, relembra-me uma coisa difícil de resolver: a noção fortíssima que esses primeiros cristãos tinham da parusia iminente, do fim dos tempos com o regresso triunfal do Cristo Messias. Até hoje. Caro Fernando, vou pensar um bocado mais nisso e depois respondo-lhe se puder. Entretanto você foi mauzinho, você desenterrou uma frase de Alfred de Loisy que eu já há muito varrera para debaixo do tapete: "os cristãos esperavam o Reino de Deus e foi a Igreja que veio".
Voltaremos pois a conversar, se você tiver vontade.
system update
Há quase duas semanas que não me tem apetecido dizer nada. Porque tanto tem sido dito. Porque tenho andado não info-excluído mas a modos que info-inibido. Porque recebi 2 ou 3 mails que me deixaram embatucado (não, meu caro Doutor, consultor de saúde pública, perito médico-legal, e especialista em medicina do trabalho, não foi o seu...). Porque tenho andado a ser picado por dúvidas antigas. Porque ando chateado com certas e determinadas situações...
Mas vou-me deixar de umbiguismos grotescos. Hoje de manhã tirei um tempito para passar os olhos pela blogosfera e vi que:
- a terra da alegria, essa, continua alive and kicking. E habitada pelo Espírito Santo.
- mais um conterrâneo, o Zé Maria Brito, abriu um blogue: o haja o que houver, nome bem a propósito.
- um blogue imprescindível me apareceu: o confessionário de um padre. Irei lá muitas vezes, as que forem necessárias.
- o enchamos tudo de futuros do meu amigo Zé Filipe e seus amigos, fez um ano e eu não tinha dado por isso! Miserere! Parabéns para todos eles, e à Rita que os inspira sempre.
Mas vou-me deixar de umbiguismos grotescos. Hoje de manhã tirei um tempito para passar os olhos pela blogosfera e vi que:
- a terra da alegria, essa, continua alive and kicking. E habitada pelo Espírito Santo.
- mais um conterrâneo, o Zé Maria Brito, abriu um blogue: o haja o que houver, nome bem a propósito.
- um blogue imprescindível me apareceu: o confessionário de um padre. Irei lá muitas vezes, as que forem necessárias.
- o enchamos tudo de futuros do meu amigo Zé Filipe e seus amigos, fez um ano e eu não tinha dado por isso! Miserere! Parabéns para todos eles, e à Rita que os inspira sempre.
segunda-feira, abril 11, 2005
A justa medida
O Marco Oliveira, na Terra da Alegria de hoje, fala-nos da importância dos Simblolismo nas Escrituras, importância muito maior do que a da sua historicidade. E de facto é assim mesmo: as coisas que dizem ter acontecido são mais importantes pela razão profunda pela qual aconteceram do que pela forma exacta como aconteceram. E foi essa razão profunda, a mais profunda de todas as razões, que uniu os que tiveram presentes na Igreja de S.Nicolau, como o mesmo Marco nos relata e mostra hoje no seu Povo de Bahá.
O homem que era 6ªfeira
Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra. Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher. Deus os abençoou: Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra. Deus disse: Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus, a tudo o que se arrasta sobre a terra, e em que haja sopro de vida, eu dou toda erva verde por alimento. E assim se fez. Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o sexto dia.
Porque é que eu enfio aqui o Génesis outra vez? Para vos mandar ver duas representações gráficas da mesma coisa: a do carteirista Paulo Ribeiro e a do carreirista Francisco d´Ollanda. Ah, e também porque queria lembrar a um hereje amigo, blogger incensado e insensato, que bom seria cuidar das trentações do mundo. Sim, das trentações!
Disse.
Disse.
sexta-feira, abril 08, 2005
Dura lex
A propósito do meu post anterior o Marcus Pimenta, a quem mando um abraço, enviou-me um link com uma interessantíssima análise jurídica sobre o julgamento de Jesus (ver aqui). Se as coisas se tivessem passado por estas bandas, o caso teria terminado no Tribunal da Relação, por nulidade insanável.
Mais a sério, uma frase a reter, entre muitas outras: «uma lamentável confusão resultou em 2000 anos de animosidade desnecessária entre Cristãos e Judeus. Foram os sacerdotes Judeus que buscaram a morte de Jesus, não o povo».
Mais a sério, uma frase a reter, entre muitas outras: «uma lamentável confusão resultou em 2000 anos de animosidade desnecessária entre Cristãos e Judeus. Foram os sacerdotes Judeus que buscaram a morte de Jesus, não o povo».
quarta-feira, abril 06, 2005
Reflexões pascais (2) - um exercício de contraditório
Nota: continuo a minha conversa com o Nuno Guerreiro, em stereo e sensurround. Aqui e na Terra.
Hesitei um bocado se esta semana deveria continuar as minhas reflexões ou, ao invés, falar aqui um bocado sobre o papa João Paulo II. Não para fazer um balanço do seu papado, que praticamente não conheci outro, não para lhe fazer mais uma laudatória, que tantas já foram e serão feitas, mas para reflectir um pouco sobre o espantoso fim do seu papado. Contudo, resolvi continuar a glosar à volta da Páscoa. Mas espero ainda falar aqui do papa, talvez quando já houver um novo. Tempus fugit!
Voltemos pois à Páscoa deste ano da graça de 2005. Ouvi algures o Cardeal Patriarca a dizer que se assiste por aí, de uma forma crescente, à popularização da figura de Jesus mas dum Jesus humano, não o Jesus filho de Deus. O zeloso César das Neves certamente que pensou e escreveu também algures, que esta des-divinização da figura de Cristo é uma amável e subtil forma de ataque ao âmago da fé cristã. Talvez o seja mas não sou muito dado a teorias de conspiração...Mas facto é de que o que torna diferente, talvez única, a forma cristã de acreditar em Deus é acreditar que ele se fez homem entre os homens e se deixou prender e humilhar e matar às mãos dos outros homens, para a sua vida e a sua palavra, na sua total coerência, pudesse mostrar aos homens o Deus connosco, e mostrando-O, nos indicasse o caminho para Ele. Acreditar verdadeiramente, inteligivelmente, nisto não é nada fácil. Mas será talvez a forma mais libertadora de acreditar em Deus. Mas adiante.
Vou de novo ter com o meu amigo Nuno da Rua da Judiaria, que acredita no mesmo Deus que eu, embora de forma diversa, para comentar com ele um comentário que ele fez sobre a sua perspectiva da nossa Páscoa. Como não é de surpreender, o Nuno conta-nos a nós cristãos coisas que muitos de nós devíamos saber mas, tal é a nossa vaga religiosidade, não sabemos ou já o esquecemos.
Nesse post o Nuno começa por nos relatar os numerosos pontos de contacto entre a Páscoa dos cristãos e a Pessach dos judeus, naturalmente aliás, pois a Páscoa que celebramos é a evocação do que aconteceu a Cristo quando, como quase todos os judeus da Judéia, foi a Jeruslalém nos tempos da Pessach, de cujo nome proveio o seu.
Assim a última ceia foi sem dúvida a «obrigatória refeição ritual – o Seder –, comemorando a libertação do seu povo da escravidão no Egipto, e do qual são retirados directamente os próprios símbolos que nas missas católicas pretendem recordar a última refeição de Jesus e o chamado sacrifício pascal – o pão e o vinho. Ainda hoje, numa tradição que dura há milénios, os judeus celebram a sua Páscoa cumprindo mandamentos estritos que ordenam que se beba vinho e coma pão ázimo em memória da libertação dos israelitas, liderados por Moisés, da escravidão no Egipto. Estes dois elementos profundamente judaicos estão na origem da utilização da hóstia e do vinho nas missas católicas, introduzidos nos primeiros séculos.»
Um outro aspecto interessante focado pelo Nuno é a forma como a Igreja fixa esta festa móvel do Cristianismo: « a Páscoa é (uma) festividade cristã cuja data não é fixa – uma característica que partilha com algumas festas religiosas do judaísmo –, ocorrendo no primeiro domingo após “a primeira lua nova eclesiástica depois do equinócio de 21 de Março”».
Estas e outras analogias entre as duas “Páscoas” provam evidentemente a matriz judaica do cristianismo. Mas o facto é que nas evoluções divergentes das duas religiões, a partir do acto fundador do Cristianismo que foi a Paixão de Cristo, elas tornaram-se festas de significado profundamente diferente.
É bem certo que da parte do Cristianismo houve desde o início um movimento de apropriação do simbolismo da Pessach judaica no ideário cristão como que tornando a libertação do povo judeu da escravidão no Egipto, com o auxílio directo e espectacular de Deus, numa espécie de antegosto da libertação, não já apenas dos judeus mas de toda a humanidade, das garras do pecado e da morte pelo sacrifício supremo e oferecido do Filho de Deus encarnado.
Ora, diga-se que compreensivelmente, já o judaísmo não sente qualquer afinidade com a Páscoa cristã. E o meu caro amigo Nuno permitir-me-á que diga que isso é cristalinamente visível nos seus comentários adicionais sobre a historicidade na nossa Páscoa. Isto acontece por motivos vários e bem compreensíveis. Vejamos alguns.
Um deles, talvez o mais importante, é o altíssimo e injustíssimo preço que na História subsequente o povo judeu pagou pelo rótulo de povo deícida que o cristianismo emergente lhe colou na reputação. Isso aliás aconteceu pela simples e usual razão de que a mensagem divina de Cristo tem sido tão imperfeitamente compreendida por tantos e tantos cristãos, cristãos que se estivessem nessa altura e naquele sítio teriam também insultado e apedrejado Aquele que lhes veio dizer que, pensando-se justos, estavam (ou estão) longíssimo de Deus.
Mas há outros motivos importantes. O facto de Cristo se ter apresentado à sociedade que o rodeava como o Messias redentor, há tanto esperado, sobrepôe-se a qualquer dúvida exegética. E tendo sido rejeitado como tal pelo Judaísmo, não se pode esperar dele senão descrença perante os factos que indiciam a natureza divina de Jesus. Por outro lado, a visão de Deus herdada da vida e Palavra de Cristo é tão radicalmente diferente da visão judaica, que não se poderia esperar nem exigir uma identificação fraternal.
Talvez ninguém tenha uma visão tão clara dessa diferença fundamental como aqueles que evoluíram duma matriz judaica, mais ou menos religiosa, para o cristianismo. Dou como exemplo alguém que comecei há pouco a conhecer, alguém cujos escritos me tem andado a maravilhar e também a perturbar, pela estranha sensação de uma inesperada afinidade espiritual. Falo da Simone Weil que escreveu uma coisa assim:
“Tucídides escreveu «Cremos, por tradição, no que respeita aos deuses, e vemos, por experiência, no que respeita aos homens que, constantemente, por uma necessidade natural, qualquer ser exerce todo o poder de que dispõe». Do mesmo modo, como o gás, a alma tende a ocupar totalidade do espaço que é lhe é concedido. Um gás que encolhesse e que abandonasse o vazio, seria contrário à lei (natural) da entropia. E é isso mesmo o que se passa com o Deus dos cristãos. É um Deus sobrenatural enquanto Jeová é um Deus natural.”
E outra coisa ainda:
“A enorme grandeza do cristianismo reside no facto de não procurar um remédio sobrenatural contra o sofrimento, mas sim uma prática sobrenatural do sofrimento.”
Apesar destas citações, ambas d´A Gravidade e a Graça (ed.Relógio d´Água), estarem intimamente ligadas com a natureza profunda da Páscoa e com o significado imanente da paixão de Cristo, estou talvez a desviar-me do assunto. Coloquei-as contudo para salientar que isto, que penso ser o núcleo central da Fé cristã, todo ele contido na Páscoa, ser algo difícil de apreender, de concordar, não só por judeus como até mesmo por muitos cristãos, que necessitam do milagre para acreditar Nele. Mas, mais uma vez, adiante.
Dizendo de antemão que compreendo a posição do Nuno, vou analisar um pouco em mais detalhe algumas coisas que ele refere no seu excelente post:
«O relato cristão da história pascal é bem conhecido de todos, no entanto, as narrativas tradicionais da Paixão de Cristo e da Páscoa cristã – descritas pelos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João – são hoje postos em causa por historiadores e académicos, que descrevem os textos sagrados cristãos primariamente como doutrinários e não históricos, contendo entre si inúmeras contradições e inconsistências. Mesmo assim, eles são muitas vezes a única fonte directa de informação. Na verdade, os evangelhos, canonizados como parte integrante da Bíblia cristã no século IV, seriam escritos apenas no século II, cerca de 100 anos decorridos sobre a morte de Jesus – numa altura em que o cristianismo primitivo se debatia com intensas discussões doutrinárias e uma vontade crescente de emancipação em relação ao judaísmo.»
Após o que o Nuno enuncia uma série de implausibilades históricas que ele consideram existir na narrativa da Páscoa cristã, a saber: a libertação de Barrabás, incoerente com as práticas dos exércitos romanos; o “lavar de mãos” de Pilatos, inverosímil face ao carácter brutal do personagem e branqueador do autoritarismo romano; e, inevitavelmente, a improvável iniciativa do Sinédrio para a crucificação de Jesus dado esta ser uma típica pena romana aplicada a crimes de insubordinação política como o seria o facto de Jesus se intitular rei dos Judeus.
O Nuno vai certamente desculpar-me mas o meu espírito dialético, mais do que os meus pruridos de crente, impelem-me a contestar muito do que ele escreve.
Vou falar primeiro da questão, nada irrelevante, da exegese dos textos cristãos primordiais, se são históricos ou doutrinais, se foram efectivamente escritos por aqueles a quem são atribuídos, no fundo se contam aquilo que se passou ou aquilo que os cristãos queriam que se tivesse passado...
Devo dizer que esta questão do valor histórico das escrituras sagradas é uma questão transversal a todas as religiões. Terá sido mesmo Moisés que escreveu toda a Torah, mesmo o Deuteronómio, misteriosamente descoberto durante umas obras no Templo de Salomão? E o que terá acontecido à suprema Escritura, o Decálogo, escrito directamente por Deus, guardado na Arca da Aliança, no Tabernáculo e depois no Templo, no Santo dos Santos, dele obscuramente desaparecida, segundo dizem nos reinados de Manassés ou Amon? E se as escrituras judaicas resultaram da fixação por escrito duma sólida tradição oral, séculos após os factos relatados, porque não admitir que algo tão fortemente marcante como a vida pública de Jesus o foi para os seus seguidores não pudesse igualmente ser fielmente passada a escrito por devotos posteriores? Por outro lado, sendo certo que surgem omissões e contradições nos 4 evangelhos, ainda mais certo é que no essencial, como o é a narrativa do período da paixão de Cristo os relatos são assinalavelmente concordantes, mesmo quanto à cena de Barrabás referida por não apenas por Mateus mas por todos os quatro evangelistas!
Quanto à pena de crucificação dada a Jesus, sendo certo que era um castigo eminentemente romano, parece-me incorrecto concluír que foi um castigo a um delito de insubordinação política a Jesus, aquele que dizia “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”! Aliás, se recordarmos bem, nessa altura a Judéia era um protectorado romano, cujo estatuto permitia e até favorecia a existência de reis colaboracionistas. Recordemos Herodes o Grande, rei da Judeia por ter casado com uma descendente dos Asmoneus, reconstrutor do Templo, pai e avô de reis e tetrarcas de dinastia herodiana, amigo e colaborador dos romanos. Aliás se ser judeu e rei de judeus fosse delito político, o patético Herodes Antipas teria também morrido na cruz e não na ignomínia...
Termino estas minudências citando um autor, injustamente esquecido mas referido pelo Nuno: o historiador judeu romanizado, Flávio Josefo, contemporâneo de Vespasiano e da destruição de Jerusalém. Foi sua a grandiosa obra Antiguidades Judaicas, que introduziu ao universo latino e cristão o Antigo Testamento. Durante séculos em muitos lares cristãos existiu um exemplar deste livro, a ponto de o chamarem de 5ºEvangelho. Hoje, sinal da descristianização do século, já quase ninguém se lembra dele. Nesse livro, num capítulo dedicado aos tempos do imperador Tibério, surge uma breve passagem sobre Jesus, passagem que foi conhecida pelo nome de testimonium Flavianum: «Foi nessa época que surgiu Jesus, homem sábio, se é que se deve chamá-lo de homem. Pois era um fazedor de milagres e mestre dos homens que recebem com alegria a verdade. Atraiu para si muitos judeus e muitos gregos. Era Cristo. E quando, sob a crucificação, aqueles que primeiro o tinham adorado não deixaram de fazê-lo pois ele apareceu três dias depois, ressuscitado. Tal como os profetas divinos tinham anunciado junto a mil outras maravilhas a seu respeito. E o grupo que recebeu o seu nome – os cristãos – ainda não desapareceu» (AJ, XVIII, 63-64).
É certo que esta passagem foi denunciada por Voltaire como uma interpolação fraudulenta. Hoje acredita-se mais que é uma passagem original, com algumas observações escritas na margem por algum pio leitor cristão do séc.IV (cit.Mireille Hadas-Lebel).
Mas chega. Lendo o que escrevi acima, parece-me um árido e adversativo exercício de erudição de alamanaque. Pensando bem a narrativa da Páscoa de Cristo vale por si própria. Tem uma beleza inefável que transcende o humano. É uma beleza apenas possível em Deus e com Deus. A sua verdade advém da sua impossibilidade, na medida em que até aí nunca se pensou ser possível um Deus assim.
E digo aos meus irmãos judeus não que acreditem mas que se desinquietem. Jesus foi condenado e morto não por romanos e judeus mas por homens como nós. Quem tem a certeza de que não teria ido na multidão, de que não teria rasgado as suas vestes, que lhes atire a primeira pedra. E se os homens se conhecessem a si próprios nenhuma pedra teria saído do chão.
Hesitei um bocado se esta semana deveria continuar as minhas reflexões ou, ao invés, falar aqui um bocado sobre o papa João Paulo II. Não para fazer um balanço do seu papado, que praticamente não conheci outro, não para lhe fazer mais uma laudatória, que tantas já foram e serão feitas, mas para reflectir um pouco sobre o espantoso fim do seu papado. Contudo, resolvi continuar a glosar à volta da Páscoa. Mas espero ainda falar aqui do papa, talvez quando já houver um novo. Tempus fugit!
Voltemos pois à Páscoa deste ano da graça de 2005. Ouvi algures o Cardeal Patriarca a dizer que se assiste por aí, de uma forma crescente, à popularização da figura de Jesus mas dum Jesus humano, não o Jesus filho de Deus. O zeloso César das Neves certamente que pensou e escreveu também algures, que esta des-divinização da figura de Cristo é uma amável e subtil forma de ataque ao âmago da fé cristã. Talvez o seja mas não sou muito dado a teorias de conspiração...Mas facto é de que o que torna diferente, talvez única, a forma cristã de acreditar em Deus é acreditar que ele se fez homem entre os homens e se deixou prender e humilhar e matar às mãos dos outros homens, para a sua vida e a sua palavra, na sua total coerência, pudesse mostrar aos homens o Deus connosco, e mostrando-O, nos indicasse o caminho para Ele. Acreditar verdadeiramente, inteligivelmente, nisto não é nada fácil. Mas será talvez a forma mais libertadora de acreditar em Deus. Mas adiante.
Vou de novo ter com o meu amigo Nuno da Rua da Judiaria, que acredita no mesmo Deus que eu, embora de forma diversa, para comentar com ele um comentário que ele fez sobre a sua perspectiva da nossa Páscoa. Como não é de surpreender, o Nuno conta-nos a nós cristãos coisas que muitos de nós devíamos saber mas, tal é a nossa vaga religiosidade, não sabemos ou já o esquecemos.
Nesse post o Nuno começa por nos relatar os numerosos pontos de contacto entre a Páscoa dos cristãos e a Pessach dos judeus, naturalmente aliás, pois a Páscoa que celebramos é a evocação do que aconteceu a Cristo quando, como quase todos os judeus da Judéia, foi a Jeruslalém nos tempos da Pessach, de cujo nome proveio o seu.
Assim a última ceia foi sem dúvida a «obrigatória refeição ritual – o Seder –, comemorando a libertação do seu povo da escravidão no Egipto, e do qual são retirados directamente os próprios símbolos que nas missas católicas pretendem recordar a última refeição de Jesus e o chamado sacrifício pascal – o pão e o vinho. Ainda hoje, numa tradição que dura há milénios, os judeus celebram a sua Páscoa cumprindo mandamentos estritos que ordenam que se beba vinho e coma pão ázimo em memória da libertação dos israelitas, liderados por Moisés, da escravidão no Egipto. Estes dois elementos profundamente judaicos estão na origem da utilização da hóstia e do vinho nas missas católicas, introduzidos nos primeiros séculos.»
Um outro aspecto interessante focado pelo Nuno é a forma como a Igreja fixa esta festa móvel do Cristianismo: « a Páscoa é (uma) festividade cristã cuja data não é fixa – uma característica que partilha com algumas festas religiosas do judaísmo –, ocorrendo no primeiro domingo após “a primeira lua nova eclesiástica depois do equinócio de 21 de Março”».
Estas e outras analogias entre as duas “Páscoas” provam evidentemente a matriz judaica do cristianismo. Mas o facto é que nas evoluções divergentes das duas religiões, a partir do acto fundador do Cristianismo que foi a Paixão de Cristo, elas tornaram-se festas de significado profundamente diferente.
É bem certo que da parte do Cristianismo houve desde o início um movimento de apropriação do simbolismo da Pessach judaica no ideário cristão como que tornando a libertação do povo judeu da escravidão no Egipto, com o auxílio directo e espectacular de Deus, numa espécie de antegosto da libertação, não já apenas dos judeus mas de toda a humanidade, das garras do pecado e da morte pelo sacrifício supremo e oferecido do Filho de Deus encarnado.
Ora, diga-se que compreensivelmente, já o judaísmo não sente qualquer afinidade com a Páscoa cristã. E o meu caro amigo Nuno permitir-me-á que diga que isso é cristalinamente visível nos seus comentários adicionais sobre a historicidade na nossa Páscoa. Isto acontece por motivos vários e bem compreensíveis. Vejamos alguns.
Um deles, talvez o mais importante, é o altíssimo e injustíssimo preço que na História subsequente o povo judeu pagou pelo rótulo de povo deícida que o cristianismo emergente lhe colou na reputação. Isso aliás aconteceu pela simples e usual razão de que a mensagem divina de Cristo tem sido tão imperfeitamente compreendida por tantos e tantos cristãos, cristãos que se estivessem nessa altura e naquele sítio teriam também insultado e apedrejado Aquele que lhes veio dizer que, pensando-se justos, estavam (ou estão) longíssimo de Deus.
Mas há outros motivos importantes. O facto de Cristo se ter apresentado à sociedade que o rodeava como o Messias redentor, há tanto esperado, sobrepôe-se a qualquer dúvida exegética. E tendo sido rejeitado como tal pelo Judaísmo, não se pode esperar dele senão descrença perante os factos que indiciam a natureza divina de Jesus. Por outro lado, a visão de Deus herdada da vida e Palavra de Cristo é tão radicalmente diferente da visão judaica, que não se poderia esperar nem exigir uma identificação fraternal.
Talvez ninguém tenha uma visão tão clara dessa diferença fundamental como aqueles que evoluíram duma matriz judaica, mais ou menos religiosa, para o cristianismo. Dou como exemplo alguém que comecei há pouco a conhecer, alguém cujos escritos me tem andado a maravilhar e também a perturbar, pela estranha sensação de uma inesperada afinidade espiritual. Falo da Simone Weil que escreveu uma coisa assim:
“Tucídides escreveu «Cremos, por tradição, no que respeita aos deuses, e vemos, por experiência, no que respeita aos homens que, constantemente, por uma necessidade natural, qualquer ser exerce todo o poder de que dispõe». Do mesmo modo, como o gás, a alma tende a ocupar totalidade do espaço que é lhe é concedido. Um gás que encolhesse e que abandonasse o vazio, seria contrário à lei (natural) da entropia. E é isso mesmo o que se passa com o Deus dos cristãos. É um Deus sobrenatural enquanto Jeová é um Deus natural.”
E outra coisa ainda:
“A enorme grandeza do cristianismo reside no facto de não procurar um remédio sobrenatural contra o sofrimento, mas sim uma prática sobrenatural do sofrimento.”
Apesar destas citações, ambas d´A Gravidade e a Graça (ed.Relógio d´Água), estarem intimamente ligadas com a natureza profunda da Páscoa e com o significado imanente da paixão de Cristo, estou talvez a desviar-me do assunto. Coloquei-as contudo para salientar que isto, que penso ser o núcleo central da Fé cristã, todo ele contido na Páscoa, ser algo difícil de apreender, de concordar, não só por judeus como até mesmo por muitos cristãos, que necessitam do milagre para acreditar Nele. Mas, mais uma vez, adiante.
Dizendo de antemão que compreendo a posição do Nuno, vou analisar um pouco em mais detalhe algumas coisas que ele refere no seu excelente post:
«O relato cristão da história pascal é bem conhecido de todos, no entanto, as narrativas tradicionais da Paixão de Cristo e da Páscoa cristã – descritas pelos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João – são hoje postos em causa por historiadores e académicos, que descrevem os textos sagrados cristãos primariamente como doutrinários e não históricos, contendo entre si inúmeras contradições e inconsistências. Mesmo assim, eles são muitas vezes a única fonte directa de informação. Na verdade, os evangelhos, canonizados como parte integrante da Bíblia cristã no século IV, seriam escritos apenas no século II, cerca de 100 anos decorridos sobre a morte de Jesus – numa altura em que o cristianismo primitivo se debatia com intensas discussões doutrinárias e uma vontade crescente de emancipação em relação ao judaísmo.»
Após o que o Nuno enuncia uma série de implausibilades históricas que ele consideram existir na narrativa da Páscoa cristã, a saber: a libertação de Barrabás, incoerente com as práticas dos exércitos romanos; o “lavar de mãos” de Pilatos, inverosímil face ao carácter brutal do personagem e branqueador do autoritarismo romano; e, inevitavelmente, a improvável iniciativa do Sinédrio para a crucificação de Jesus dado esta ser uma típica pena romana aplicada a crimes de insubordinação política como o seria o facto de Jesus se intitular rei dos Judeus.
O Nuno vai certamente desculpar-me mas o meu espírito dialético, mais do que os meus pruridos de crente, impelem-me a contestar muito do que ele escreve.
Vou falar primeiro da questão, nada irrelevante, da exegese dos textos cristãos primordiais, se são históricos ou doutrinais, se foram efectivamente escritos por aqueles a quem são atribuídos, no fundo se contam aquilo que se passou ou aquilo que os cristãos queriam que se tivesse passado...
Devo dizer que esta questão do valor histórico das escrituras sagradas é uma questão transversal a todas as religiões. Terá sido mesmo Moisés que escreveu toda a Torah, mesmo o Deuteronómio, misteriosamente descoberto durante umas obras no Templo de Salomão? E o que terá acontecido à suprema Escritura, o Decálogo, escrito directamente por Deus, guardado na Arca da Aliança, no Tabernáculo e depois no Templo, no Santo dos Santos, dele obscuramente desaparecida, segundo dizem nos reinados de Manassés ou Amon? E se as escrituras judaicas resultaram da fixação por escrito duma sólida tradição oral, séculos após os factos relatados, porque não admitir que algo tão fortemente marcante como a vida pública de Jesus o foi para os seus seguidores não pudesse igualmente ser fielmente passada a escrito por devotos posteriores? Por outro lado, sendo certo que surgem omissões e contradições nos 4 evangelhos, ainda mais certo é que no essencial, como o é a narrativa do período da paixão de Cristo os relatos são assinalavelmente concordantes, mesmo quanto à cena de Barrabás referida por não apenas por Mateus mas por todos os quatro evangelistas!
Quanto à pena de crucificação dada a Jesus, sendo certo que era um castigo eminentemente romano, parece-me incorrecto concluír que foi um castigo a um delito de insubordinação política a Jesus, aquele que dizia “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”! Aliás, se recordarmos bem, nessa altura a Judéia era um protectorado romano, cujo estatuto permitia e até favorecia a existência de reis colaboracionistas. Recordemos Herodes o Grande, rei da Judeia por ter casado com uma descendente dos Asmoneus, reconstrutor do Templo, pai e avô de reis e tetrarcas de dinastia herodiana, amigo e colaborador dos romanos. Aliás se ser judeu e rei de judeus fosse delito político, o patético Herodes Antipas teria também morrido na cruz e não na ignomínia...
Termino estas minudências citando um autor, injustamente esquecido mas referido pelo Nuno: o historiador judeu romanizado, Flávio Josefo, contemporâneo de Vespasiano e da destruição de Jerusalém. Foi sua a grandiosa obra Antiguidades Judaicas, que introduziu ao universo latino e cristão o Antigo Testamento. Durante séculos em muitos lares cristãos existiu um exemplar deste livro, a ponto de o chamarem de 5ºEvangelho. Hoje, sinal da descristianização do século, já quase ninguém se lembra dele. Nesse livro, num capítulo dedicado aos tempos do imperador Tibério, surge uma breve passagem sobre Jesus, passagem que foi conhecida pelo nome de testimonium Flavianum: «Foi nessa época que surgiu Jesus, homem sábio, se é que se deve chamá-lo de homem. Pois era um fazedor de milagres e mestre dos homens que recebem com alegria a verdade. Atraiu para si muitos judeus e muitos gregos. Era Cristo. E quando, sob a crucificação, aqueles que primeiro o tinham adorado não deixaram de fazê-lo pois ele apareceu três dias depois, ressuscitado. Tal como os profetas divinos tinham anunciado junto a mil outras maravilhas a seu respeito. E o grupo que recebeu o seu nome – os cristãos – ainda não desapareceu» (AJ, XVIII, 63-64).
É certo que esta passagem foi denunciada por Voltaire como uma interpolação fraudulenta. Hoje acredita-se mais que é uma passagem original, com algumas observações escritas na margem por algum pio leitor cristão do séc.IV (cit.Mireille Hadas-Lebel).
Mas chega. Lendo o que escrevi acima, parece-me um árido e adversativo exercício de erudição de alamanaque. Pensando bem a narrativa da Páscoa de Cristo vale por si própria. Tem uma beleza inefável que transcende o humano. É uma beleza apenas possível em Deus e com Deus. A sua verdade advém da sua impossibilidade, na medida em que até aí nunca se pensou ser possível um Deus assim.
E digo aos meus irmãos judeus não que acreditem mas que se desinquietem. Jesus foi condenado e morto não por romanos e judeus mas por homens como nós. Quem tem a certeza de que não teria ido na multidão, de que não teria rasgado as suas vestes, que lhes atire a primeira pedra. E se os homens se conhecessem a si próprios nenhuma pedra teria saído do chão.
domingo, abril 03, 2005
Ecce homo
Enquanto me faltam as palavras certas fico-me pela imagem mais forte que dele me ficou:
(Gabriel Bouys, World Press Photo - 1999)
(Gabriel Bouys, World Press Photo - 1999)
"Ninguém (foi) mais fraco - a cada momento julgámo-lo chegado ao limite das suas forças - e dessa fraqueza irradiava uma força como jamais me lembro de ter presenciado" (J.Bénard da Costa)
sexta-feira, abril 01, 2005
the real issue
Ontem quando ia para casa, ouvi no noticiário da TSF uma crónica duma jornalista exultante, sobre a agonia e morte da Terri Schiavo. Após um relato no mínimo enviezado sobre os contornos desta complexa situação, a dita jornalista concluiu com uma pérola inesquecível: "ao fim de 15 anos de luta, Terri Schiavo venceu a luta pelo seu direito à morte" (!).
Não podia ter sido mais eloquente esta jornalista. O facto, rigoroso mas inútil, de a vontade de Terri Schiavo sobre a sua vida não ser verdadeiramente conhecida, senão através duma versão contada pelo seu marido há 7 anos sobre algo que ela teria dito há mais de 15 anos, não tem qualquer valor para este jornalismo de causas que nem questiona sequer o facto do marido de Terri ter levado 8 anos a comunicar os desejos da sua mulher impossibilitada de os comunicar directamente.
Aliás, conhecendo eu tão mal os detalhes deste caso, não estou aqui a condenar o marido. Admito que durante 8 anos ele teve esperança na recuperação da sua mulher e depois perdeu-a. Admito que no lugar dele seja legítimo desejar o término daquela situação.
Mas o facto incontornável é que a vontade de Terri não era nem foi inequivocamente conhecida. E como tal, não foi tida nem achada. E assim sendo não havia o direito de lhe roubar a vida que ela efectivamente tinha.
Reflectindo melhor sobre tudo isto, parece-me hoje que a questão da vontade do doente é absolutamente crucial em tudo isto. Quero eu dizer que poderei até admitir a eutanásia se fôr essa mesmo a vontade verdadeiramente inequívoca do doente. O que há que fazer é garantir que essa vontade não resulte da vontade de terceiros nem, e isso é fundamental, da falta de atenção e dos cuidados paliativos que poderiam tornar mais suportável o seu sofrimento, por forma que eventualmente até fosse descoberto algum sentido nesse sofrimento.
Agora sendo inequívoca a vontade em terminar a agonia, sendo intolerável e intolerado o sofrimento, admito que se faça a vontade do doente. A vida foi-lhe oferecida, bem como a liberdade em a utilizar, disso dará contas a Deus, que acredito ser infinitamente misericordioso, sobretudo com quem muito sofre.
Neste caso, pelo que me é dado a conhecer, nada disto se passou. Por isso, acho absolutamente lamentável esta morte por inanição, esta morte legalmente assistida.