quarta-feira, maio 31, 2006
o fundo do fundo
Ainda (ou já) há um português que pensa como eu: que é na escassez e na penúria que reside a nossa última esperança.
terça-feira, maio 23, 2006
um pequeno conto
O Luís, o Afonso, a Susana e o Lutz eram amigos e estavam a brincar os quatro. De longe a Carla via-os a brincar, quiz também brincar com eles e disse-lhes uma piada. O Luís é que não achou piada nenhuma e disse-o à Carla. Foi até um bocado bruto com ela e ela ficou chateadíssima. A Susana, que era também amiga da Carla, ficou muito aflita e correu a consolá-la e o Luís ficou um pouco picado, como que por um espinho. Já o Afonso, esse ficou mesmo zangado com o Luís e foi logo a correr empurrá-lo e chamou-lhe nomes. O Lutz, que era estrangeiro e falava ainda mal a nossa língua, ficou aflito sem perceber bem o que se passava. Ainda assim tentou acalmar os amigos e chegou até a dizer umas piadas. Mas o Luís tinha ficado mesmo zangado, sobretudo com os nomes que o Afonso lhe tinha chamado e ficou a achar que os seus amigos eram mais amigos da Carla do que dele. Então o Luís disse bem alto: «já não brinco mais com vocês, vou-me embora». Os outros três ficaram a olhar uns para os outros durante um bocado e depois foram cada um para seu sítio. E foi assim que se acabou a brincadeira.
Parece um lugar-comum e é mesmo.
Parece um lugar-comum e é mesmo.
quinta-feira, maio 18, 2006
A cadeira do bispo
(director´s cut)
Those were the days, lá isso foram de facto esses dias, em que o meu verbo prolixo discorria sobre tudo o que mexia, aqui no Guia e sobretudo na Terra. Dias em que ainda não tinha dito tudo, dias em que sentia o Paráclito digitando no meu teclado. Hoje, entre grosas de spam em alfabeto cirílico, surgiu-me um mail duma leitora incitando-me a mim e a outros bloggers católicos a insugirem-se contra a jacobina tentativa parlamentar de retirar ao Sr.Patriarca o seu simpático lugar na liturgia do Estado. Pois, minha cara Senhora e irmã na Fé, sinceramente não vejo o porquê da sua revolta. No entanto e para lho explicar, nada tenho melhor do que lhe repetir uma imensa prosa que há dois anos debitei na Terra da Alegria. Aí vai pois, directamente também do baú, um post de alarmantes proporções, também para mandar bem para baixo do tapete as provas da minha rarefação bloguística.
Quando vejo na televisão uma reportagem sobre a abertura do ano judicial ou sobre o encerramento dum qualquer congresso nacional sobre saúde pública ou sobre a sessão solene da inauguração de mais um imponente quartel de bombeiros, há sempre ali, isoladas no palco em lugar de honra, duas entidades que me deixam perplexo e melancólico: um enorme cadeirão estilo D.Maria ou D.João V e um Bispo da minha Igreja sentado nele.
Abstraio-me logo do que está acontecer naquela sala (o que nunca é grave) e fico a pensar: o que é que estará ali o senhor bispo a fazer? qual a verdadeira razão porque o nosso subtil Estado o convidou? e porque é que o obrigou a sentar-se naquele cadeirão? e, mais importante ainda, porque é que o bispo aceitou ir àquela liturgia dum reino que não é o de Deus? e porque será que ele se presta a representar a ficção de uma tutela que manifestamente não existe?
E o cómico é que eu e, provavelmente, o bispo não somos os únicos incomodados com a situação. Os jacobinos, republicanos, laicos e anti-clericais torcem-se todos com mais um espetáculo de sujeição do Estado, estrutural e constitucionalmente laico, à presença tutelar da Santa Madre Igreja Católica, a ICAR, como eles agora gostam de lhe chamar com um azedume satisfeito. E desatam logo a falar-nos do opróbio da Concordata, da religião e moral nas escolas, do mau exemplo que é o celibato dos padres, dos escandalosos benefícios e património da Igreja.
Quando trovejam assim, parece que viajamos no tempo, para a época já imemorial do Dr. Salazar e do seu grande amigo Cardeal Cerejeira, quando aquele mandava neste para assim controlar os portugueses totalmente, tão totalmente que ia até ao fundo das suas almas crentes.
Nesses tempos sim, aí é que a Igreja Católica era poderosa e opulenta! O Estado encarregava-se até de, civilmente, garantir a eficácia de alguns sacramentos ministrados. Nesses tempos éramos todos baptizados, íamos todos à missa, Fátima era uma dádiva particular de Nossa Senhora ao nosso pequeno mas grande País. Nesses tempos, proclamar ateísmo ou protestantismo era socialmente mal visto porque civilmente malquisto. Nesses tempos ser padre, ser bispo, era ter um papel importante e prestigioso no tecido social português. Nesse tempo ser católico era algo que decorria naturalmente da tradição, da inércia ou da arte de ser português. É seguramente desse tempo que vem a prática do cadeirão do bispo nas cerimónias do regime...
Então esses é que foram tempos de ouro para a Igreja e o Catolicismo triunfantes, certo? Errado!
Esses foram os tempos em que Salazar, verdadeira encarnação do espírito do poder absoluto, sumamente subtil, sumamente exigente, sumamente duro de coração, dominou, usou, brincou, manipulou a Igreja Católica do seu grande amigo Cerejeira, homem superiormente inteligente mas não tanto quanto Salazar. Este homem dos diabos, que era muito mais supersticioso do que crente, viu na Igreja Católica um instrumento mais para poder governar beatífica e pacíficamente aquela pobre gente que eram os portugueses!
E em troca, claro, ofereceu duas coisas irrecusáveis a uma Igreja ainda traumatizada pelas perseguições dos mata-frades da 1ª República. À hierarquia ofereceu uma posição honrosa e confortável na sociedade. E à sua missão, adjudicada por Deus, ofereceu um povo dócil e temente. E a Igreja, cujo fim último nunca deixa de ser a salvação do Povo de Deus, não pôde recusar a oferta. Não pôde e, tal era a subtil arte de Salazar, não quis.
Tenho a certeza porém de que Cerejeira e os seus pares perceberam a teia que Salazar lhes teceu. Porém observando com receio e espanto os ventos da história que sopravam fortemente para lá dos Pirinéus, escolheram acomodar-se à confortável teia que lhes foi oferecida. Fizeram o que acharam melhor ou, se calhar, o que lhes restava fazer. A bem da nação. Não devem ser censurados por isso.
Agora é claro que a verdadeira missão da Igreja de Cristo saiu prejudicada. Salazar, claro, estava-se nas tintas para isso. Ele, que tinha lido Unamuno, viu a Igreja como uma fonte perene e eficaz de consolação, de contentamento para o seu povo simples. Nada mais. E, consequentemente, foi essa a função que ela teve. A promessa de salvação na vida eterna era, nesses tempos, mais importante do que a obrigação de ensinar e viver a Palavra de Cristo.
É por isso que quem pensa e diz que a Igreja Católica era todo-poderosa no antigo regime está a ser vítima dum piedoso engano. Era, sim, um instrumento mais. Rica, prestigiada, opulenta, mas um instrumento...
Já agora, não se pense que Salazar foi original e inventou algo de novo. Desde o estalar da guerra entre os papas e os imperadores Hohenstauffen do Sacro Império Romano Germânico, no sec.XIII, até à Revolução Francesa, que o poder secular europeu se foi libertando da tutela da Igreja mas continuou a ver sempre as Igrejas Católica e Reformada, como úteis fontes de legitimação e importantes muletas de poder.
Mas voltemos a Portugal, século XX, anos 60.
Foi naquele contexto, e para o modificar, que surgiram aqueles que mais tarde se vieram a chamar de Vencidos do Catolicismo. Bénard da Costa falou deles e do seu falhanço. Esse falhanço em trazer a Igreja para a sua missão evangélica, incómoda para os poderes humanos, era inevitável face ao peso do Estado e da hierarquia. Eles quiseram e acharam possível que catolicismo português de então voltasse a ser sinónimo de viver em nome de Cristo. O poder, claro, achou que isso não convinha à sacrossanta mas constrangida paz social de então. Então, com toda a naturalidade, o poder esperou que eles esbarrassem no imobilismo e conservadorismo da hierarquia da Igreja e que, finalmente, desanimassem e, quase todos, se afastassem. Foi o que aconteceu. Foi um falhanço daqueles jovens vibrantes mas foi um falhanço e uma perda maior para a Igreja. Mas foi um falhanço que deixou frutos...
A Portugal iam chegando os ecos não só de prosperidades e desenvolvimentos alheios como também ecos de que na própria Igreja Católica sopravam ventos de mudança e refundação para que ela pudesse cumprir verdadeiramente a sua missão e dar verdadeiro testemunho de Cristo. O pontificado de João XXIII e Concílio Vaticano II tiveram tal impacto que conseguiram chegar a este canto obscuro, onde uma nova geração de católicos, na JUC, na LOC, noutros movimentos, descobriu maravilhada uma outra dimensão para a Fé em que tinha nascido e crescido. E pensou que essa dimensão mais cristã, mais humana, mais social, poderia ser acolhida pela hierarquia da Igreja e, inclusivamente, ajudar à evolução do regime. Mas os condicionamentos criados por Salazar e interiorizados pela Igreja geraram fortes resistências a esta nova forma de laicado católico, mau grado também o aparecimento duma nova geração de padres, imbuídos do espírito do Vaticano II. O conflito foi surdo mas áspero e o resultado mais visível é bem conhecido. Mas esses Vencidos, que deixaram a Igreja, deixaram nela e no povo católico sementes que perduraram até hoje.
Agora passados 30 e tal anos e olhando o que nós, católicos e Igreja, somos hoje neste país dá ideia que “se rasgou ao meio o véu do templo” de tal modo são diferentes os problemas com que nos confrontamos. Neste período de tempo tudo aconteceu e tudo mudou.
Houve a primavera marcelista e um novo levantar de cabeça dos que queriam reformar a Igreja do mesmo modo que queriam reformar o regime. Foram os tempos em que apareceram os “católicos progressistas” e em que a Capela do Rato se agigantou perante a Basílica da Estrela.
Houve depois o 25 de Abril e o PREC. Foi este um período catártico, ambíguo e excitante para a Igreja Católica. Catártico porque passou a haver-se com um Estado em que, por um tempo, deixou de ser benvinda mas que a libertou das teias debilitantes de Salazar. Ambíguo porque no meio daquela voragem política e quase sem se perceber como, a Igreja conseguiu passar ao lado do naufrágio do regime com o qual esteve tão ligada. Excitante porque na tempestade de Verão em 75, a Igreja sentiu que mantinha a sua influência sociológica e, tirando alguns padres transviados pela utopia revolucionária, conseguia manter a sua coesão interna. Foram os tempos do cónego Melo, dos sinos a rebate, da manifestação dos tachos e das panelas mas também da perspicaz moderação do Cardeal D.António e, duma maneira geral, de toda cúpula da Igreja.
Depois vieram os tempos do reequilíbrio, da instituição duma normalidade democrática, à europeia. Veio o tempo em que a direita democrática se estreou no poder. Veio o bloco central e os anos de chumbo da economia. Veio a regeneração cavaquista, a euforia económica e mais tarde uma crispação cansada. Vieram depois os tempos em que as virtudes evangélicas pareceram chegar ao poder através duma esquerda amável e edulcorada. E por momentos pareceu-nos que o país era já inteiramente outro, rico como os nossos parceiros europeus, por causa dos carros novos, dos telemóveis, da Net, da TV Cabo, do milhão de portugueses de férias de Páscoa no Algarve, do crédito ao estalar dos dedos, da facilidade em comprar e ter e ir e acontecer. Depois, abruptamente, ao cair duma ponte, descobrimos que continuávamos portugueses e caímos, também nós, numa depressão que ainda hoje perdura.
Por entre tudo isto a Igreja Católica comportou-se galhardamente. Passou da ditadura à democracia, do corporativismo ao capitalismo, com uma revolução pelo meio, integrando-se num modelo de estado em mutação, como se nada fosse. Relacionou-se com todos, como quis, sem se hipotecar a ninguém. Consegue hoje a proeza de ter uma base sociológica aparentemente de direita mas ter uma hierarquia aparentemente a exibir posições de esquerda social. Consegue, num tempo de deliquescência de instituições, manter-se como instituição credível e ouvida. E consegue manter a cadeira do Bispo nas cerimónias da democracia!
Então agora é que são tempos de ouro para a Igreja e o Catolicismo triunfantes, certo? Errado, outra vez!
A partir daqui, e para explicar esta guinada oratória, devo avisar que este pequeno ensaio deixa de ser factual e passa a ser meramente opinativo. E as opiniões que transmite tem a distância decorrente do facto de quem as emite limitar a sua relação com a Igreja à frequência dominical da missa e a participação num movimento de leigos fortemente atomizado.
E a minha opinião é a de que nestes últimos 30 anos, com uma suma habilidade, resultante não só das qualidades da hierarquia como também duma experiência acumulada duas vezes milenar, a Igreja Católica portuguesa concentrou a sua melhor atenção em duas entidades:
- o Estado, para melhor a ele se acomodar e evitar repetições de desvarios passados e também, seguramente, para o levar a não descurar a vertente social e sociológica de que se tornou paladina tal como para evitar nele desvios secularizantes ou anti-doutrinais excessivamente óbvios e formais.
- a base sociológica de crentes pré-existente na altura do 25 de Abril, e por cujas necessidades de assistência espiritual e ritual a Igreja tem velado com eficiência satisfatória, mau grado as óbvias dificuldades de recrutamento de novos sacerdotes.
Ora, a minha ideia é que por muito se ter focado nestas duas vertentes, a Igreja, passou ao lado dum fenómeno de grande magnitude cujas consequências estarão ainda para vir, mas que irão alterar completamente a relação da Igreja com o Estado e o posicionamento dos crentes católicos no ambiente sociológico português. Eu não digo que a Igreja não detectou o fenómeno. Detectou-o com certeza, mas o facto é que concentrou os recursos da sua inteligência colectiva na observação, assistência e “acompanhamento” das duas entidades atrás referidas.
O fenómeno de que estou a falar é a drástica evolução, não política, não económica, mas sobretudo sociológica e cultural ocorrida nestes últimos 30 anos, que levou por exemplo a uma profunda descatolicização e crescente agnosticização das novas gerações, o que começa já a ter consequências visíveis. Por ter estado tão atenta à potencial secularização do Estado, a Igreja viu acontecer, com protesto seu mas sem acção consequente, uma profunda secularização do tecido social português. Vemos um Estado ainda reverente (daí a cadeira) mas uma população indiferente. A tal ponto que já hoje e a partir de hoje, ser Igreja e ser católico nesta sociedade portuguesa é e será algo de radicalmente diferente do que foi no passado.
E a ideia que tenho é que muitos católicos leigos já sentem isto diariamente mas a Igreja, essa, enquanto instituição, não estou seguro que tenha percebido plenamente a nossa nova condição minoritária.
Acho que devo talvez explicar um pouco melhor o que entendo ter sido a tal “drástica evolução sociológica e cultural ocorrida nestes últimos 30 anos, que levou a uma profunda descatolicização e crescente agnosticização das novas gerações”. E só depois explicar então a minha visão do que é ser católico hoje e aqui. Não posso também deixar de advertir que não estou minimamente habilitado para escrever o que vem a seguir.
Olhemos pois de novo para estes últimos 30 anos. Não dum ponto de vista histórico ou político mas puramente sociológico. E aí, na minha opinião, aquilo que mais relevante foi acontecendo na cabeça dos portugueses foi a percepção crescente de que, primeiro no domínio político e mais tarde no domínio económico, era finalmente possível andarmos a par com a Europa, entidade mítica para nós desde os tempos do Marquês de Pombal, símbolo de tudo aquilo que sentimos longamente não ter: prosperidade, liberdade, modernidade, numa palavra, civilização.
Consequentemente, duma forma lenta e progressiva, pois tal é o nosso ethos provinciano, o povo português foi-se lentamente despojando daquele código de valores com que, durante longas décadas, foi espartilhado. Esse código, construído todo ele por Salazar, instilado sistematicamente pela máquina que ele criou, era essencialmente um conjunto de valores e noções que aquele homem superior mas pequenino, místico mas céptico, considerou servir melhor o consciente e inconsciente colectivos deste povo que ele desprezava intensamente apesar de talvez o amar como parte de si próprio.
Assim, como nos faltava o espírito industrioso e empreendedor, incensou-se a simplicidade de vida, a pobreza honrada e trabalhadora, o ruralismo bucólico, o aconchego do corporativismo. Como nos faltavam grandezas e feitos que naquele tempo impressionassem o mundo e inchassem o nosso patriotismo, glorificaram-se e mitificaram-se as grandezas e feitos passados. Como nos faltavam figuras figuram públicas de relevo e acção, endeusou-se naturalmente Salazar, ele próprio a Figura salvadora e redentora da Pátria, grande entre os grandes do mundo, mas ao mesmo tempo pequeno e simplório como qualquer um de nós. Como nos faltavam a prosperidade e o conforto material, valorizou-se a ascese e o conforto espiritual. Pressentindo-se a louca e perigosa deriva mundial para o choque entre blocos, invocou-se a protecção da Virgem para este reguengo amável e temente a Deus. E valorizaram-se o Estado, a Empresa, a Família, como entidades protectoras do indivíduo, cada qual na sua instância. Noutro domínio, a tristeza melancólica que nos sobra foi poetizada e musicada. E a irrelevância que pressentíamos ter era às vezes disfarçada pelo Benfica e pelo hóquei em patins. Enfim, éramos o país e povo dos três F´s: Fátima, fado e futebol. E assim se poderá talvez resumir o universo moral do povo português até há coisa de 30 anos. Universo em que o catolicismo ou pelo menos uma forma dele foi a roupagem espiritual de quase todos nós.
Mas isto pertence definitivamente ao passado. Esse código de valores evaporou-se, primeiro superficialmente, depois mais profundamente. E novos valores surgiram. De onde? Não das profundezas da nossa identidade colectiva mas, mais prosaicamente, do estrangeiro. Claro que as elites cultas já há muito vinham bebendo o caldo cultural francês: a literatura, o existencialismo, o cinema e toda essa parafernália. Mas após o 25 de Abril alargou-se a oferta e aumentou imensamente a procura.
Primeiro foi toda aquela ideologia e cultura revolucionárias vindas sobretudo da América Latina e mais circunscritamente dos países do Leste e que varreu toda aquela mítica da pobreza honrada e do trabalho sacrificial e santificador. Ao mesmo tempo, a descolonização possível levou-nos a ter de varrer para debaixo do tapete as recordações incómodas dum império anacrónico. Depois a Europa connosco e novamente a american way of life, levaram a classe média a sonhar com uma vida totalmente diversa da que lhe propôs o “António das Botas” e diversa também daquela que fora ameaçada pelos barbudos da Quinta Divisão. Por uma vez pareceu que querer uma vida material melhor já não era nem pecado nem crime contra o povo. Mais tarde veio a Gabriela e o Brasil pela televisão, e os seus encantos perturbantes entraram-nos pela sala dentro. O país boquiaberto olhou para os cafunés da dita com seu Nacib e para o Bataclan como coisa nunca vista, pelo menos em família. E aí, muito mais do que com a liberalização da pornografia, começou a ruir lenta mas irremediavelmente o luso puritanismo sexual que se sustentava sobretudo numa espessa e ingénua ignorância. Esquecia-me do divórcio, uma conquista de Abril merecedora duma emenda na Concordata. Primeiro lentamente mas com aceleração constante os problemas do casamento passaram a ser reconhecidos como uma realidade solucionável pela resolução do mesmo. A igualdade dos sexos foi finalmente reconhecida, sobretudo nos efeitos tidos por convenientes. A mulher casada passou a trabalhar e, mais ainda, a ter de trabalhar. O modelo de família alterou-se profundamente. A relação pais-filhos tornou-se em algo movediço com terras de ninguém e campos minados. O sistema educativo mudou, mudou, mudou e tornou a mudar. Continua sistema mas não sei se educativo. Mais tarde, já na CEE, a política agrícola comum deu o tiro de misericórdia no ruralismo bucólico que restava e o país tornou-se urbano, ou melhor, suburbano. A música também mudou. Depois do apogeu da música de intervenção, vista no fundo como mais chata ainda que o fado e o nacional-cançonetismo de antanho, veio o rock português e também a música que mais tarde ficou pimba. Ainda no domínio lúdico, apareceu o Herman e o seu humor iconoclasta. Vieram as novelas brasileiras e depois as portuguesas, que fixaram novos arquétipos nos relacionamentos familiares, afectivos, sociais, profissionais. Vieram as TV´s privadas e o tabloidismo dos media e a ânsia geral pelos 15 minutos de fama apagou o nosso secular recato. E com os anos de ouro do cavaquismo e guterrismo, chegou um novo Deus, o consumismo, que passou a ser possível, mais do que isso, socialmente bem visto, praticamente obrigatório. Mas, que diabo, pelo menos um século de pobreza franciscana ajudam a compreender a sofreguidão com que mergulhámos na aparência de uma abundância para quase todos...
Mas paro por aqui antes que se zanguem comigo ou apareça um sociólogo encartado a demolir estas inanes recordações. Aliás, quem quiser recordar e aprofundar esta revolução cultural à portuguesa relembro e recomendo as saudosas e míticas crónicas do Miguel Esteves Cardoso, felizmente publicadas em vários livros.
Regresso portanto ao meu ponto. E o meu ponto é que há 30 anos o consciente e inconsciente colectivos do povo português saíram abruptamente da pasmaceira em que estiveram amodorrados e foram submetidos desde então a uma irradiação maciça de estímulos, nos mais diversos campos, e que nos mudaram a nós de cima a baixo.
Ora, nesse turbilhão de novos estímulos que atroou pelas nossas cabeças, o que de relevante e novo surgiu em termos da nossa religiosidade nacional, a católica? Penso que muito pouco. A Igreja, como já disse, continuou coesa e influente, mas isso a nível da instituição, da hierarquia, porque a nível dos crentes manteve-se o nosso profundo silêncio e iniciou-se uma erosão notória e contínua, factores que fizeram reduzir sensivelmente a influência social do catolicismo.
Agora que pus aqui a minha visão sobre as profundas alterações ocorridas desde há 30 anos no código de valores do povo português e também no seu inconsciente colectivo, é bom dizer que a ela, pela minha idade, falta certamente distanciamento. Ao fim e ao cabo, tinha eu 10 anos em 74 pelo que todo este mundo novo entrou em mim como em terreno virgem. Mas como será que a Igreja Católica, enquanto instituição pensante, viu e vê toda esta mudança que ocorreu? É uma pergunta a que, por falta de fontes bem colocadas, só posso responder especulando. E é isso que vou fazer, se mo permitem.
Já aqui disse que o 25 de Abril encontrou a Igreja bem preparada para ele. A inteligência moderada do Cardeal D.António fez escola e a Igreja navegou à vista para junto de um estado e uma sociedade mais modernos. Nessa navegação esteve sobretudo atenta a um possível Adamastor: o regresso aos tempos violentamente anti-clericais da I República em que ela se viu perseguida, espoliada e quase impedida de exercer o seu ministério. Foi sobretudo a repetição de tudo isso que quis evitar e para tal geriu com mestria o seu relacionamento com o poder. Já quanto ao seu relacionamente com os fiéis, a Igreja quis sem dúvida prestar os serviços mínimos, mas tal como não quis dar muito nas vistas enquanto instituição também não o quis enquanto corpo social, enquanto comunidade de crentes. Viveram-se tempos estranhos e mal compreendidos e quiseram-se evitar manifestações de religiosidade exarcebada com medo de destoar negativamente e provocar reacções difíceis de controlar. Houve sempre Fátima, algumas visitas papais, as campanhas anti-aborto, mas tirando isso, as manifestações de religiosidade católica primaram por uma discrição prudente.
E digo prudente porque é minha convicção profunda que a Igreja durante pelo menos 20 destes 30 anos olhou para as transformações da sociedade com muita atenção e receio mas com pouca vontade de as compreender. É preciso ter em conta que a crise das vocações vinha já bastante de trás, penso que desde o apogeu da guerra colonial que arrastou tantos jovens para longe, devolvendo-os à Patria diferentes do que eram quando partiram. Essa crise de vocações levou a um envelhecimento do clero que se hoje ainda é grave, já há 30 anos era crítico. E esse envelhecimento, aliado a uma perspectiva geneticamente conservadora, levou à tal prudência e incompreensão perante o que se estava a passar.
São pois a prudência excessiva e falta de vontade de toda uma geração do clero em compreender o que ia na cabeça das gentes, as únicas razões que me permitem explicar um certo abandono a que os fiéis, os novos fiéis sobretudo, foram votados pela Igreja.
Digo abandono, sim senhor. Pois o facto, a meu ver inequívoco, é que pelo menos durante duas décadas a Igreja Católica mantêve-se do lado de lá do altar, a ministrar os sacramentos, a confortar os fiéis pela continuidade da sua presença, a satisfazê-los pela continuidade da sua influência, mas abdicou de fazer uma coisa aparentemente simples: conversar connosco, saber o que pensávamos, conhecer tudo aquilo que perturbava a nossa Fé. Para ser inteiramente justo, devo dizer que esta atitude vinha de trás, de tempos onde tais coisas não eram vistas como necessárias. Mas o facto é que de repente, tudo mudou e essas coisas passaram a sê-lo e muito. Uma vez mais o facto de se ter um clero envelhecido em muito contribuiu para esta carência que se sentiu e que deixou consequências profundas. Devo também dizer que a culpa não deve ser toda assacada à Igreja: nós, comunidade de fiéis, aceitámos em silêncio o silêncio da Igreja. Talvez por andarmos distraídos com outras coisas mas também por aquele antigo atavismo católico que espera que a Santa Madre Igreja pense e supra as nossas necessidades espirituais. Um dia temos de mudar isso...
Mas sejamos concretos.
A catequização (coisa essencial para uma Fé pois como acreditar no que não se conhece?) andou largos anos desaparecida. A Igreja ainda se fiou, por demasiado tempo, na Religião e Moral das escolas, que não podia ser nem devia ser nem foi catequese coisíssima nenhuma. Nas paróquias (disso lembro-me eu bem) os catequistas faltaram e muito e os que havia eram normalmente boas almas a precisar de reciclagem ou também, eles próprios, de catequese! E, por outro lado, com a suburbanização das cidades, as paróquias existentes esvaziaram-se de pessoas e as novas levaram eternidades a serem formadas e a ganharem vida de comunidade. Este católico que vos escreve fez a 1ªcomunhão (ainda no marcelismo) mas não chegou ao crisma por falta de catequese que me atraísse em vez do contrário...
Passemos agora aos movimentos de leigos, pois também nós somos Igreja. Também aí, durante os tais vinte e tal anos, andámos um bocado por vielas escuras: tirando vetustas irmandades que usam opa e desfilam em procissões, pouco mais houve de relevante e socialmente visível durante anos a fio.
Quanto à administração dos sacramentos, sobretudo o baptismo e o matrimónio, talvez com a intenção de não impôr, não afastar, não melindrar uma sociedade que não se compreendia bem, o facto é que (e isto é uma impressão baseada naquilo que me é próximo) durante largos anos esses sacramentos foram mais celebrações rituais do que oportunidades de evangelização e catequização dos fiéis. Nestas décadas mais recentes tanta gente pôde casar-se sem perceber e sem se compromenter com aquilo que é sagrado no matrimónio, tanta gente pôde baptizar os seus filhos sem sentir a mínima obrigação moral em os educar na fé... Está também aí uma das razões pela qual em tantas e tantas famílias formalmente católicas, o sentido do religioso ter sido completamente varrido da vivência e da consciência familiares. Se olharmos para a geração dos que tem hoje entre 15 a 30 anos de idade e verificarmos o espectacular e generalizado alheamento da Fé e da Igreja não devemos ficar minimamente surpreendidos. Tenho pois para mim que uma geração de casais abandonados pela Igreja e tornados católicos não praticantes gerou uma geração praticamente inteira de jovens intrinsecamente agnósticos.
Olhemos agora de novo para o clero. A falta de vocações pré-existente ao 25 de Abril e consequente falta de renovação do mesmo, provocou uma desmotivante estagnação ao nível da liturgia, ao nível da linguagem e ao nível da intervenção na sociedade. Recordo missas nos anos 80, na minha paróquia de sempre, missas deprimentes em que a talha dourada da igreja acentuava o ambiente funerário da liturgia. E as homilias, dessas melhor é nem falar. Perdi aí a minha fé que perdida andou durante uns 10 anos.
A propósito de homilias chegamos à questão da linguagem da Igreja. E novamente aí temos que, pelo menos durante os primeiros 20 anos da democracia, a linguagem católica não evoluiu com os novos tempos. Repare-se que não estou a falar do conteúdo, estou a falar da forma e do tom do discurso da Igreja. Esteve longos anos cristalizado. Muitos católicos deixaram de o compreender e de se identificar com ele.
Parece-me que vou ficar por aqui. Esta é a minha visão pela qual no período de que falei a Igreja Católica em Portugal foi perdendo os fiéis e estes foram perdendo a Igreja e ambos foram perdendo a espiritualidade, o espírito de comunidade e o espírito de solidariedade que são pilares fundamentais do acreditar em Cristo e viver em Seu nome, isto é, do ser-se Cristão e Católico.
Contudo, a partir de determinada altura as coisas começaram a mudar. Recordo-me da pedrada no charco que foi o bispo D.Manuel Martins em Setúbal no princípio dos anos 90: a Igreja tinha novamente intervenção social e do lado dos pobres! Recordo da surpresa que foi o novo cardeal D.José Policarpo: dele vinha uma nova linguagem que já era entendível aos nossos ouvidos. Dele vinha um novo interesse pela catequese dos fiéis, pela reevangelização da sociedade. E sentiu-se a partir daí uma nova espiritualidade na Igreja. Começaram a aparecer padres novos (ou nem tanto) que falavam coisas que entendíamos e precisávamos de ouvir. Cito alguns, de memória e que eu conheço, dos mais diversos géneros e tendências mas que renovaram a linguagem católica e lhe trouxeram de novo a autoridade intelectual e espiritual que andavam escondidas: o padre Resina, o frei Bento Domingues, o padre Janela, o frei Bernardo (no Porto), o padre João Sabra, o padre Stilwell, o padre José Manuel Pereira de Almeida, o bispo D.Januário, o padre Francisco (da Serafina), o padre Tolentino (um dos novíssimos), o padre Pinto de Magalhães, etc., etc.
E os movimentos de leigos reanimaram-se, sobretudo, a partir dos anos 90: a MCE, as ENS, o CVX, a C&L, etc. Passou a haver uma nova atenção aos jovens, aos casais, aos trabalhadores, aos sem-abrigo. O Banco Alimentar do Padre Vaz Pinto foi uma manifestação mediaticamente visível da solidariedade católica organizada.
Eu diria também que a Igreja a certa altura abandonou a ideia de se apoiar na sua base sociológico-política de sempre e abriu-se e virou-se para outras sensibilidades. E isso foi bom para evitar tentações de elitismo. Daí que neste momento eu sinta genuinamente haver uma recuperação de algumas coisas essenciais: a comunhão entre a Igreja e os leigos, a abertura à sociedade no seu todo e duma forma transversal, a renovação da linguagem católica, o ressurgimento duma espiritualidade mais genuína. Sinto também que a arrogância da instituição perante os próprios crentes e as outras confissões tem vindo a ser substituída por uma atitude de respeito pela individualidade e desejo de procura dum caminho em comum. E sinto outra coisa: hoje que somos notoria e reconhecidamente minoritários na sociedade portuguesa, a afirmação pessoal de catolicismo já não provoca aquele sentimento, em nós próprios e nos outros, de se ser uma avis rara. Raros continuamos talvez a ser, mas talvez não tão avis assim!
Tudo isto atrás escrito são ideias e impressões de um leigo católico que pouco mais faz do que ir à missa e ter um blogue. E que anda um bocado mais optimista com tudo isto.
Mas atenção, ainda há coisas esdrúxulas! Por exemplo, tudo o que se passou à volta da nova Concordata, deixou-me a sombra dum incómodo e duma perplexidade. E agora, neste mês de Maria do ano de 2006, parece que na Igreja, ainda há quem se preocupe activamente em manter a cadeira do bispo no palanque constitucional...
Those were the days, lá isso foram de facto esses dias, em que o meu verbo prolixo discorria sobre tudo o que mexia, aqui no Guia e sobretudo na Terra. Dias em que ainda não tinha dito tudo, dias em que sentia o Paráclito digitando no meu teclado. Hoje, entre grosas de spam em alfabeto cirílico, surgiu-me um mail duma leitora incitando-me a mim e a outros bloggers católicos a insugirem-se contra a jacobina tentativa parlamentar de retirar ao Sr.Patriarca o seu simpático lugar na liturgia do Estado. Pois, minha cara Senhora e irmã na Fé, sinceramente não vejo o porquê da sua revolta. No entanto e para lho explicar, nada tenho melhor do que lhe repetir uma imensa prosa que há dois anos debitei na Terra da Alegria. Aí vai pois, directamente também do baú, um post de alarmantes proporções, também para mandar bem para baixo do tapete as provas da minha rarefação bloguística.
Quando vejo na televisão uma reportagem sobre a abertura do ano judicial ou sobre o encerramento dum qualquer congresso nacional sobre saúde pública ou sobre a sessão solene da inauguração de mais um imponente quartel de bombeiros, há sempre ali, isoladas no palco em lugar de honra, duas entidades que me deixam perplexo e melancólico: um enorme cadeirão estilo D.Maria ou D.João V e um Bispo da minha Igreja sentado nele.
Abstraio-me logo do que está acontecer naquela sala (o que nunca é grave) e fico a pensar: o que é que estará ali o senhor bispo a fazer? qual a verdadeira razão porque o nosso subtil Estado o convidou? e porque é que o obrigou a sentar-se naquele cadeirão? e, mais importante ainda, porque é que o bispo aceitou ir àquela liturgia dum reino que não é o de Deus? e porque será que ele se presta a representar a ficção de uma tutela que manifestamente não existe?
E o cómico é que eu e, provavelmente, o bispo não somos os únicos incomodados com a situação. Os jacobinos, republicanos, laicos e anti-clericais torcem-se todos com mais um espetáculo de sujeição do Estado, estrutural e constitucionalmente laico, à presença tutelar da Santa Madre Igreja Católica, a ICAR, como eles agora gostam de lhe chamar com um azedume satisfeito. E desatam logo a falar-nos do opróbio da Concordata, da religião e moral nas escolas, do mau exemplo que é o celibato dos padres, dos escandalosos benefícios e património da Igreja.
Quando trovejam assim, parece que viajamos no tempo, para a época já imemorial do Dr. Salazar e do seu grande amigo Cardeal Cerejeira, quando aquele mandava neste para assim controlar os portugueses totalmente, tão totalmente que ia até ao fundo das suas almas crentes.
Nesses tempos sim, aí é que a Igreja Católica era poderosa e opulenta! O Estado encarregava-se até de, civilmente, garantir a eficácia de alguns sacramentos ministrados. Nesses tempos éramos todos baptizados, íamos todos à missa, Fátima era uma dádiva particular de Nossa Senhora ao nosso pequeno mas grande País. Nesses tempos, proclamar ateísmo ou protestantismo era socialmente mal visto porque civilmente malquisto. Nesses tempos ser padre, ser bispo, era ter um papel importante e prestigioso no tecido social português. Nesse tempo ser católico era algo que decorria naturalmente da tradição, da inércia ou da arte de ser português. É seguramente desse tempo que vem a prática do cadeirão do bispo nas cerimónias do regime...
Então esses é que foram tempos de ouro para a Igreja e o Catolicismo triunfantes, certo? Errado!
Esses foram os tempos em que Salazar, verdadeira encarnação do espírito do poder absoluto, sumamente subtil, sumamente exigente, sumamente duro de coração, dominou, usou, brincou, manipulou a Igreja Católica do seu grande amigo Cerejeira, homem superiormente inteligente mas não tanto quanto Salazar. Este homem dos diabos, que era muito mais supersticioso do que crente, viu na Igreja Católica um instrumento mais para poder governar beatífica e pacíficamente aquela pobre gente que eram os portugueses!
E em troca, claro, ofereceu duas coisas irrecusáveis a uma Igreja ainda traumatizada pelas perseguições dos mata-frades da 1ª República. À hierarquia ofereceu uma posição honrosa e confortável na sociedade. E à sua missão, adjudicada por Deus, ofereceu um povo dócil e temente. E a Igreja, cujo fim último nunca deixa de ser a salvação do Povo de Deus, não pôde recusar a oferta. Não pôde e, tal era a subtil arte de Salazar, não quis.
Tenho a certeza porém de que Cerejeira e os seus pares perceberam a teia que Salazar lhes teceu. Porém observando com receio e espanto os ventos da história que sopravam fortemente para lá dos Pirinéus, escolheram acomodar-se à confortável teia que lhes foi oferecida. Fizeram o que acharam melhor ou, se calhar, o que lhes restava fazer. A bem da nação. Não devem ser censurados por isso.
Agora é claro que a verdadeira missão da Igreja de Cristo saiu prejudicada. Salazar, claro, estava-se nas tintas para isso. Ele, que tinha lido Unamuno, viu a Igreja como uma fonte perene e eficaz de consolação, de contentamento para o seu povo simples. Nada mais. E, consequentemente, foi essa a função que ela teve. A promessa de salvação na vida eterna era, nesses tempos, mais importante do que a obrigação de ensinar e viver a Palavra de Cristo.
É por isso que quem pensa e diz que a Igreja Católica era todo-poderosa no antigo regime está a ser vítima dum piedoso engano. Era, sim, um instrumento mais. Rica, prestigiada, opulenta, mas um instrumento...
Já agora, não se pense que Salazar foi original e inventou algo de novo. Desde o estalar da guerra entre os papas e os imperadores Hohenstauffen do Sacro Império Romano Germânico, no sec.XIII, até à Revolução Francesa, que o poder secular europeu se foi libertando da tutela da Igreja mas continuou a ver sempre as Igrejas Católica e Reformada, como úteis fontes de legitimação e importantes muletas de poder.
Mas voltemos a Portugal, século XX, anos 60.
Foi naquele contexto, e para o modificar, que surgiram aqueles que mais tarde se vieram a chamar de Vencidos do Catolicismo. Bénard da Costa falou deles e do seu falhanço. Esse falhanço em trazer a Igreja para a sua missão evangélica, incómoda para os poderes humanos, era inevitável face ao peso do Estado e da hierarquia. Eles quiseram e acharam possível que catolicismo português de então voltasse a ser sinónimo de viver em nome de Cristo. O poder, claro, achou que isso não convinha à sacrossanta mas constrangida paz social de então. Então, com toda a naturalidade, o poder esperou que eles esbarrassem no imobilismo e conservadorismo da hierarquia da Igreja e que, finalmente, desanimassem e, quase todos, se afastassem. Foi o que aconteceu. Foi um falhanço daqueles jovens vibrantes mas foi um falhanço e uma perda maior para a Igreja. Mas foi um falhanço que deixou frutos...
A Portugal iam chegando os ecos não só de prosperidades e desenvolvimentos alheios como também ecos de que na própria Igreja Católica sopravam ventos de mudança e refundação para que ela pudesse cumprir verdadeiramente a sua missão e dar verdadeiro testemunho de Cristo. O pontificado de João XXIII e Concílio Vaticano II tiveram tal impacto que conseguiram chegar a este canto obscuro, onde uma nova geração de católicos, na JUC, na LOC, noutros movimentos, descobriu maravilhada uma outra dimensão para a Fé em que tinha nascido e crescido. E pensou que essa dimensão mais cristã, mais humana, mais social, poderia ser acolhida pela hierarquia da Igreja e, inclusivamente, ajudar à evolução do regime. Mas os condicionamentos criados por Salazar e interiorizados pela Igreja geraram fortes resistências a esta nova forma de laicado católico, mau grado também o aparecimento duma nova geração de padres, imbuídos do espírito do Vaticano II. O conflito foi surdo mas áspero e o resultado mais visível é bem conhecido. Mas esses Vencidos, que deixaram a Igreja, deixaram nela e no povo católico sementes que perduraram até hoje.
Agora passados 30 e tal anos e olhando o que nós, católicos e Igreja, somos hoje neste país dá ideia que “se rasgou ao meio o véu do templo” de tal modo são diferentes os problemas com que nos confrontamos. Neste período de tempo tudo aconteceu e tudo mudou.
Houve a primavera marcelista e um novo levantar de cabeça dos que queriam reformar a Igreja do mesmo modo que queriam reformar o regime. Foram os tempos em que apareceram os “católicos progressistas” e em que a Capela do Rato se agigantou perante a Basílica da Estrela.
Houve depois o 25 de Abril e o PREC. Foi este um período catártico, ambíguo e excitante para a Igreja Católica. Catártico porque passou a haver-se com um Estado em que, por um tempo, deixou de ser benvinda mas que a libertou das teias debilitantes de Salazar. Ambíguo porque no meio daquela voragem política e quase sem se perceber como, a Igreja conseguiu passar ao lado do naufrágio do regime com o qual esteve tão ligada. Excitante porque na tempestade de Verão em 75, a Igreja sentiu que mantinha a sua influência sociológica e, tirando alguns padres transviados pela utopia revolucionária, conseguia manter a sua coesão interna. Foram os tempos do cónego Melo, dos sinos a rebate, da manifestação dos tachos e das panelas mas também da perspicaz moderação do Cardeal D.António e, duma maneira geral, de toda cúpula da Igreja.
Depois vieram os tempos do reequilíbrio, da instituição duma normalidade democrática, à europeia. Veio o tempo em que a direita democrática se estreou no poder. Veio o bloco central e os anos de chumbo da economia. Veio a regeneração cavaquista, a euforia económica e mais tarde uma crispação cansada. Vieram depois os tempos em que as virtudes evangélicas pareceram chegar ao poder através duma esquerda amável e edulcorada. E por momentos pareceu-nos que o país era já inteiramente outro, rico como os nossos parceiros europeus, por causa dos carros novos, dos telemóveis, da Net, da TV Cabo, do milhão de portugueses de férias de Páscoa no Algarve, do crédito ao estalar dos dedos, da facilidade em comprar e ter e ir e acontecer. Depois, abruptamente, ao cair duma ponte, descobrimos que continuávamos portugueses e caímos, também nós, numa depressão que ainda hoje perdura.
Por entre tudo isto a Igreja Católica comportou-se galhardamente. Passou da ditadura à democracia, do corporativismo ao capitalismo, com uma revolução pelo meio, integrando-se num modelo de estado em mutação, como se nada fosse. Relacionou-se com todos, como quis, sem se hipotecar a ninguém. Consegue hoje a proeza de ter uma base sociológica aparentemente de direita mas ter uma hierarquia aparentemente a exibir posições de esquerda social. Consegue, num tempo de deliquescência de instituições, manter-se como instituição credível e ouvida. E consegue manter a cadeira do Bispo nas cerimónias da democracia!
Então agora é que são tempos de ouro para a Igreja e o Catolicismo triunfantes, certo? Errado, outra vez!
A partir daqui, e para explicar esta guinada oratória, devo avisar que este pequeno ensaio deixa de ser factual e passa a ser meramente opinativo. E as opiniões que transmite tem a distância decorrente do facto de quem as emite limitar a sua relação com a Igreja à frequência dominical da missa e a participação num movimento de leigos fortemente atomizado.
E a minha opinião é a de que nestes últimos 30 anos, com uma suma habilidade, resultante não só das qualidades da hierarquia como também duma experiência acumulada duas vezes milenar, a Igreja Católica portuguesa concentrou a sua melhor atenção em duas entidades:
- o Estado, para melhor a ele se acomodar e evitar repetições de desvarios passados e também, seguramente, para o levar a não descurar a vertente social e sociológica de que se tornou paladina tal como para evitar nele desvios secularizantes ou anti-doutrinais excessivamente óbvios e formais.
- a base sociológica de crentes pré-existente na altura do 25 de Abril, e por cujas necessidades de assistência espiritual e ritual a Igreja tem velado com eficiência satisfatória, mau grado as óbvias dificuldades de recrutamento de novos sacerdotes.
Ora, a minha ideia é que por muito se ter focado nestas duas vertentes, a Igreja, passou ao lado dum fenómeno de grande magnitude cujas consequências estarão ainda para vir, mas que irão alterar completamente a relação da Igreja com o Estado e o posicionamento dos crentes católicos no ambiente sociológico português. Eu não digo que a Igreja não detectou o fenómeno. Detectou-o com certeza, mas o facto é que concentrou os recursos da sua inteligência colectiva na observação, assistência e “acompanhamento” das duas entidades atrás referidas.
O fenómeno de que estou a falar é a drástica evolução, não política, não económica, mas sobretudo sociológica e cultural ocorrida nestes últimos 30 anos, que levou por exemplo a uma profunda descatolicização e crescente agnosticização das novas gerações, o que começa já a ter consequências visíveis. Por ter estado tão atenta à potencial secularização do Estado, a Igreja viu acontecer, com protesto seu mas sem acção consequente, uma profunda secularização do tecido social português. Vemos um Estado ainda reverente (daí a cadeira) mas uma população indiferente. A tal ponto que já hoje e a partir de hoje, ser Igreja e ser católico nesta sociedade portuguesa é e será algo de radicalmente diferente do que foi no passado.
E a ideia que tenho é que muitos católicos leigos já sentem isto diariamente mas a Igreja, essa, enquanto instituição, não estou seguro que tenha percebido plenamente a nossa nova condição minoritária.
Acho que devo talvez explicar um pouco melhor o que entendo ter sido a tal “drástica evolução sociológica e cultural ocorrida nestes últimos 30 anos, que levou a uma profunda descatolicização e crescente agnosticização das novas gerações”. E só depois explicar então a minha visão do que é ser católico hoje e aqui. Não posso também deixar de advertir que não estou minimamente habilitado para escrever o que vem a seguir.
Olhemos pois de novo para estes últimos 30 anos. Não dum ponto de vista histórico ou político mas puramente sociológico. E aí, na minha opinião, aquilo que mais relevante foi acontecendo na cabeça dos portugueses foi a percepção crescente de que, primeiro no domínio político e mais tarde no domínio económico, era finalmente possível andarmos a par com a Europa, entidade mítica para nós desde os tempos do Marquês de Pombal, símbolo de tudo aquilo que sentimos longamente não ter: prosperidade, liberdade, modernidade, numa palavra, civilização.
Consequentemente, duma forma lenta e progressiva, pois tal é o nosso ethos provinciano, o povo português foi-se lentamente despojando daquele código de valores com que, durante longas décadas, foi espartilhado. Esse código, construído todo ele por Salazar, instilado sistematicamente pela máquina que ele criou, era essencialmente um conjunto de valores e noções que aquele homem superior mas pequenino, místico mas céptico, considerou servir melhor o consciente e inconsciente colectivos deste povo que ele desprezava intensamente apesar de talvez o amar como parte de si próprio.
Assim, como nos faltava o espírito industrioso e empreendedor, incensou-se a simplicidade de vida, a pobreza honrada e trabalhadora, o ruralismo bucólico, o aconchego do corporativismo. Como nos faltavam grandezas e feitos que naquele tempo impressionassem o mundo e inchassem o nosso patriotismo, glorificaram-se e mitificaram-se as grandezas e feitos passados. Como nos faltavam figuras figuram públicas de relevo e acção, endeusou-se naturalmente Salazar, ele próprio a Figura salvadora e redentora da Pátria, grande entre os grandes do mundo, mas ao mesmo tempo pequeno e simplório como qualquer um de nós. Como nos faltavam a prosperidade e o conforto material, valorizou-se a ascese e o conforto espiritual. Pressentindo-se a louca e perigosa deriva mundial para o choque entre blocos, invocou-se a protecção da Virgem para este reguengo amável e temente a Deus. E valorizaram-se o Estado, a Empresa, a Família, como entidades protectoras do indivíduo, cada qual na sua instância. Noutro domínio, a tristeza melancólica que nos sobra foi poetizada e musicada. E a irrelevância que pressentíamos ter era às vezes disfarçada pelo Benfica e pelo hóquei em patins. Enfim, éramos o país e povo dos três F´s: Fátima, fado e futebol. E assim se poderá talvez resumir o universo moral do povo português até há coisa de 30 anos. Universo em que o catolicismo ou pelo menos uma forma dele foi a roupagem espiritual de quase todos nós.
Mas isto pertence definitivamente ao passado. Esse código de valores evaporou-se, primeiro superficialmente, depois mais profundamente. E novos valores surgiram. De onde? Não das profundezas da nossa identidade colectiva mas, mais prosaicamente, do estrangeiro. Claro que as elites cultas já há muito vinham bebendo o caldo cultural francês: a literatura, o existencialismo, o cinema e toda essa parafernália. Mas após o 25 de Abril alargou-se a oferta e aumentou imensamente a procura.
Primeiro foi toda aquela ideologia e cultura revolucionárias vindas sobretudo da América Latina e mais circunscritamente dos países do Leste e que varreu toda aquela mítica da pobreza honrada e do trabalho sacrificial e santificador. Ao mesmo tempo, a descolonização possível levou-nos a ter de varrer para debaixo do tapete as recordações incómodas dum império anacrónico. Depois a Europa connosco e novamente a american way of life, levaram a classe média a sonhar com uma vida totalmente diversa da que lhe propôs o “António das Botas” e diversa também daquela que fora ameaçada pelos barbudos da Quinta Divisão. Por uma vez pareceu que querer uma vida material melhor já não era nem pecado nem crime contra o povo. Mais tarde veio a Gabriela e o Brasil pela televisão, e os seus encantos perturbantes entraram-nos pela sala dentro. O país boquiaberto olhou para os cafunés da dita com seu Nacib e para o Bataclan como coisa nunca vista, pelo menos em família. E aí, muito mais do que com a liberalização da pornografia, começou a ruir lenta mas irremediavelmente o luso puritanismo sexual que se sustentava sobretudo numa espessa e ingénua ignorância. Esquecia-me do divórcio, uma conquista de Abril merecedora duma emenda na Concordata. Primeiro lentamente mas com aceleração constante os problemas do casamento passaram a ser reconhecidos como uma realidade solucionável pela resolução do mesmo. A igualdade dos sexos foi finalmente reconhecida, sobretudo nos efeitos tidos por convenientes. A mulher casada passou a trabalhar e, mais ainda, a ter de trabalhar. O modelo de família alterou-se profundamente. A relação pais-filhos tornou-se em algo movediço com terras de ninguém e campos minados. O sistema educativo mudou, mudou, mudou e tornou a mudar. Continua sistema mas não sei se educativo. Mais tarde, já na CEE, a política agrícola comum deu o tiro de misericórdia no ruralismo bucólico que restava e o país tornou-se urbano, ou melhor, suburbano. A música também mudou. Depois do apogeu da música de intervenção, vista no fundo como mais chata ainda que o fado e o nacional-cançonetismo de antanho, veio o rock português e também a música que mais tarde ficou pimba. Ainda no domínio lúdico, apareceu o Herman e o seu humor iconoclasta. Vieram as novelas brasileiras e depois as portuguesas, que fixaram novos arquétipos nos relacionamentos familiares, afectivos, sociais, profissionais. Vieram as TV´s privadas e o tabloidismo dos media e a ânsia geral pelos 15 minutos de fama apagou o nosso secular recato. E com os anos de ouro do cavaquismo e guterrismo, chegou um novo Deus, o consumismo, que passou a ser possível, mais do que isso, socialmente bem visto, praticamente obrigatório. Mas, que diabo, pelo menos um século de pobreza franciscana ajudam a compreender a sofreguidão com que mergulhámos na aparência de uma abundância para quase todos...
Mas paro por aqui antes que se zanguem comigo ou apareça um sociólogo encartado a demolir estas inanes recordações. Aliás, quem quiser recordar e aprofundar esta revolução cultural à portuguesa relembro e recomendo as saudosas e míticas crónicas do Miguel Esteves Cardoso, felizmente publicadas em vários livros.
Regresso portanto ao meu ponto. E o meu ponto é que há 30 anos o consciente e inconsciente colectivos do povo português saíram abruptamente da pasmaceira em que estiveram amodorrados e foram submetidos desde então a uma irradiação maciça de estímulos, nos mais diversos campos, e que nos mudaram a nós de cima a baixo.
Ora, nesse turbilhão de novos estímulos que atroou pelas nossas cabeças, o que de relevante e novo surgiu em termos da nossa religiosidade nacional, a católica? Penso que muito pouco. A Igreja, como já disse, continuou coesa e influente, mas isso a nível da instituição, da hierarquia, porque a nível dos crentes manteve-se o nosso profundo silêncio e iniciou-se uma erosão notória e contínua, factores que fizeram reduzir sensivelmente a influência social do catolicismo.
Agora que pus aqui a minha visão sobre as profundas alterações ocorridas desde há 30 anos no código de valores do povo português e também no seu inconsciente colectivo, é bom dizer que a ela, pela minha idade, falta certamente distanciamento. Ao fim e ao cabo, tinha eu 10 anos em 74 pelo que todo este mundo novo entrou em mim como em terreno virgem. Mas como será que a Igreja Católica, enquanto instituição pensante, viu e vê toda esta mudança que ocorreu? É uma pergunta a que, por falta de fontes bem colocadas, só posso responder especulando. E é isso que vou fazer, se mo permitem.
Já aqui disse que o 25 de Abril encontrou a Igreja bem preparada para ele. A inteligência moderada do Cardeal D.António fez escola e a Igreja navegou à vista para junto de um estado e uma sociedade mais modernos. Nessa navegação esteve sobretudo atenta a um possível Adamastor: o regresso aos tempos violentamente anti-clericais da I República em que ela se viu perseguida, espoliada e quase impedida de exercer o seu ministério. Foi sobretudo a repetição de tudo isso que quis evitar e para tal geriu com mestria o seu relacionamento com o poder. Já quanto ao seu relacionamente com os fiéis, a Igreja quis sem dúvida prestar os serviços mínimos, mas tal como não quis dar muito nas vistas enquanto instituição também não o quis enquanto corpo social, enquanto comunidade de crentes. Viveram-se tempos estranhos e mal compreendidos e quiseram-se evitar manifestações de religiosidade exarcebada com medo de destoar negativamente e provocar reacções difíceis de controlar. Houve sempre Fátima, algumas visitas papais, as campanhas anti-aborto, mas tirando isso, as manifestações de religiosidade católica primaram por uma discrição prudente.
E digo prudente porque é minha convicção profunda que a Igreja durante pelo menos 20 destes 30 anos olhou para as transformações da sociedade com muita atenção e receio mas com pouca vontade de as compreender. É preciso ter em conta que a crise das vocações vinha já bastante de trás, penso que desde o apogeu da guerra colonial que arrastou tantos jovens para longe, devolvendo-os à Patria diferentes do que eram quando partiram. Essa crise de vocações levou a um envelhecimento do clero que se hoje ainda é grave, já há 30 anos era crítico. E esse envelhecimento, aliado a uma perspectiva geneticamente conservadora, levou à tal prudência e incompreensão perante o que se estava a passar.
São pois a prudência excessiva e falta de vontade de toda uma geração do clero em compreender o que ia na cabeça das gentes, as únicas razões que me permitem explicar um certo abandono a que os fiéis, os novos fiéis sobretudo, foram votados pela Igreja.
Digo abandono, sim senhor. Pois o facto, a meu ver inequívoco, é que pelo menos durante duas décadas a Igreja Católica mantêve-se do lado de lá do altar, a ministrar os sacramentos, a confortar os fiéis pela continuidade da sua presença, a satisfazê-los pela continuidade da sua influência, mas abdicou de fazer uma coisa aparentemente simples: conversar connosco, saber o que pensávamos, conhecer tudo aquilo que perturbava a nossa Fé. Para ser inteiramente justo, devo dizer que esta atitude vinha de trás, de tempos onde tais coisas não eram vistas como necessárias. Mas o facto é que de repente, tudo mudou e essas coisas passaram a sê-lo e muito. Uma vez mais o facto de se ter um clero envelhecido em muito contribuiu para esta carência que se sentiu e que deixou consequências profundas. Devo também dizer que a culpa não deve ser toda assacada à Igreja: nós, comunidade de fiéis, aceitámos em silêncio o silêncio da Igreja. Talvez por andarmos distraídos com outras coisas mas também por aquele antigo atavismo católico que espera que a Santa Madre Igreja pense e supra as nossas necessidades espirituais. Um dia temos de mudar isso...
Mas sejamos concretos.
A catequização (coisa essencial para uma Fé pois como acreditar no que não se conhece?) andou largos anos desaparecida. A Igreja ainda se fiou, por demasiado tempo, na Religião e Moral das escolas, que não podia ser nem devia ser nem foi catequese coisíssima nenhuma. Nas paróquias (disso lembro-me eu bem) os catequistas faltaram e muito e os que havia eram normalmente boas almas a precisar de reciclagem ou também, eles próprios, de catequese! E, por outro lado, com a suburbanização das cidades, as paróquias existentes esvaziaram-se de pessoas e as novas levaram eternidades a serem formadas e a ganharem vida de comunidade. Este católico que vos escreve fez a 1ªcomunhão (ainda no marcelismo) mas não chegou ao crisma por falta de catequese que me atraísse em vez do contrário...
Passemos agora aos movimentos de leigos, pois também nós somos Igreja. Também aí, durante os tais vinte e tal anos, andámos um bocado por vielas escuras: tirando vetustas irmandades que usam opa e desfilam em procissões, pouco mais houve de relevante e socialmente visível durante anos a fio.
Quanto à administração dos sacramentos, sobretudo o baptismo e o matrimónio, talvez com a intenção de não impôr, não afastar, não melindrar uma sociedade que não se compreendia bem, o facto é que (e isto é uma impressão baseada naquilo que me é próximo) durante largos anos esses sacramentos foram mais celebrações rituais do que oportunidades de evangelização e catequização dos fiéis. Nestas décadas mais recentes tanta gente pôde casar-se sem perceber e sem se compromenter com aquilo que é sagrado no matrimónio, tanta gente pôde baptizar os seus filhos sem sentir a mínima obrigação moral em os educar na fé... Está também aí uma das razões pela qual em tantas e tantas famílias formalmente católicas, o sentido do religioso ter sido completamente varrido da vivência e da consciência familiares. Se olharmos para a geração dos que tem hoje entre 15 a 30 anos de idade e verificarmos o espectacular e generalizado alheamento da Fé e da Igreja não devemos ficar minimamente surpreendidos. Tenho pois para mim que uma geração de casais abandonados pela Igreja e tornados católicos não praticantes gerou uma geração praticamente inteira de jovens intrinsecamente agnósticos.
Olhemos agora de novo para o clero. A falta de vocações pré-existente ao 25 de Abril e consequente falta de renovação do mesmo, provocou uma desmotivante estagnação ao nível da liturgia, ao nível da linguagem e ao nível da intervenção na sociedade. Recordo missas nos anos 80, na minha paróquia de sempre, missas deprimentes em que a talha dourada da igreja acentuava o ambiente funerário da liturgia. E as homilias, dessas melhor é nem falar. Perdi aí a minha fé que perdida andou durante uns 10 anos.
A propósito de homilias chegamos à questão da linguagem da Igreja. E novamente aí temos que, pelo menos durante os primeiros 20 anos da democracia, a linguagem católica não evoluiu com os novos tempos. Repare-se que não estou a falar do conteúdo, estou a falar da forma e do tom do discurso da Igreja. Esteve longos anos cristalizado. Muitos católicos deixaram de o compreender e de se identificar com ele.
Parece-me que vou ficar por aqui. Esta é a minha visão pela qual no período de que falei a Igreja Católica em Portugal foi perdendo os fiéis e estes foram perdendo a Igreja e ambos foram perdendo a espiritualidade, o espírito de comunidade e o espírito de solidariedade que são pilares fundamentais do acreditar em Cristo e viver em Seu nome, isto é, do ser-se Cristão e Católico.
Contudo, a partir de determinada altura as coisas começaram a mudar. Recordo-me da pedrada no charco que foi o bispo D.Manuel Martins em Setúbal no princípio dos anos 90: a Igreja tinha novamente intervenção social e do lado dos pobres! Recordo da surpresa que foi o novo cardeal D.José Policarpo: dele vinha uma nova linguagem que já era entendível aos nossos ouvidos. Dele vinha um novo interesse pela catequese dos fiéis, pela reevangelização da sociedade. E sentiu-se a partir daí uma nova espiritualidade na Igreja. Começaram a aparecer padres novos (ou nem tanto) que falavam coisas que entendíamos e precisávamos de ouvir. Cito alguns, de memória e que eu conheço, dos mais diversos géneros e tendências mas que renovaram a linguagem católica e lhe trouxeram de novo a autoridade intelectual e espiritual que andavam escondidas: o padre Resina, o frei Bento Domingues, o padre Janela, o frei Bernardo (no Porto), o padre João Sabra, o padre Stilwell, o padre José Manuel Pereira de Almeida, o bispo D.Januário, o padre Francisco (da Serafina), o padre Tolentino (um dos novíssimos), o padre Pinto de Magalhães, etc., etc.
E os movimentos de leigos reanimaram-se, sobretudo, a partir dos anos 90: a MCE, as ENS, o CVX, a C&L, etc. Passou a haver uma nova atenção aos jovens, aos casais, aos trabalhadores, aos sem-abrigo. O Banco Alimentar do Padre Vaz Pinto foi uma manifestação mediaticamente visível da solidariedade católica organizada.
Eu diria também que a Igreja a certa altura abandonou a ideia de se apoiar na sua base sociológico-política de sempre e abriu-se e virou-se para outras sensibilidades. E isso foi bom para evitar tentações de elitismo. Daí que neste momento eu sinta genuinamente haver uma recuperação de algumas coisas essenciais: a comunhão entre a Igreja e os leigos, a abertura à sociedade no seu todo e duma forma transversal, a renovação da linguagem católica, o ressurgimento duma espiritualidade mais genuína. Sinto também que a arrogância da instituição perante os próprios crentes e as outras confissões tem vindo a ser substituída por uma atitude de respeito pela individualidade e desejo de procura dum caminho em comum. E sinto outra coisa: hoje que somos notoria e reconhecidamente minoritários na sociedade portuguesa, a afirmação pessoal de catolicismo já não provoca aquele sentimento, em nós próprios e nos outros, de se ser uma avis rara. Raros continuamos talvez a ser, mas talvez não tão avis assim!
Tudo isto atrás escrito são ideias e impressões de um leigo católico que pouco mais faz do que ir à missa e ter um blogue. E que anda um bocado mais optimista com tudo isto.
Mas atenção, ainda há coisas esdrúxulas! Por exemplo, tudo o que se passou à volta da nova Concordata, deixou-me a sombra dum incómodo e duma perplexidade. E agora, neste mês de Maria do ano de 2006, parece que na Igreja, ainda há quem se preocupe activamente em manter a cadeira do bispo no palanque constitucional...
segunda-feira, maio 15, 2006
Do baú
Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se o orgulho habitar em mim serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de transportar montanhas, se o orgulho habitar em mim nada serei. E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se o orgulho habitar em mim nada disso me aproveitará.
O orgulho é paciente, é insidioso e maligno. O orgulho arde sem doer, por tudo se ufana, por tudo se ensoberbece. O orgulho só conduz a si mesmo, só procura os seus interesses, não se exaspera mas espera. O orgulho não se ressente nem do mal nem do bem, não se alegra com a injustiça nem com a justiça. O orgulho regozija-se com a verdade e, mais ainda, com a mentira. Em nome do orgulho tudo se sofre, em tudo se crê, tudo se espera, tudo se suporta.
Ainda que em nós permaneçam a Fé, a Esperança e o Amor, sendo que o Amor é o maior destes três, todos eles, mesmo o Amor, podem soçobrar pelo peso do Orgulho, que de tudo se alimenta e que a todos nós alimenta, podendo assim encher o nosso coração, esvaziando-o de tudo o resto. E assim sendo, no fim de tudo, depois de tudo ter sido apagado pela força do Orgulho, é ele que permanece em nós, no vazio imenso em que nos tornámos.
O orgulho é paciente, é insidioso e maligno. O orgulho arde sem doer, por tudo se ufana, por tudo se ensoberbece. O orgulho só conduz a si mesmo, só procura os seus interesses, não se exaspera mas espera. O orgulho não se ressente nem do mal nem do bem, não se alegra com a injustiça nem com a justiça. O orgulho regozija-se com a verdade e, mais ainda, com a mentira. Em nome do orgulho tudo se sofre, em tudo se crê, tudo se espera, tudo se suporta.
Ainda que em nós permaneçam a Fé, a Esperança e o Amor, sendo que o Amor é o maior destes três, todos eles, mesmo o Amor, podem soçobrar pelo peso do Orgulho, que de tudo se alimenta e que a todos nós alimenta, podendo assim encher o nosso coração, esvaziando-o de tudo o resto. E assim sendo, no fim de tudo, depois de tudo ter sido apagado pela força do Orgulho, é ele que permanece em nós, no vazio imenso em que nos tornámos.