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sexta-feira, outubro 29, 2004

Homo religiosus 

Tiago, meu amigo e irmão, és capaz de ter razão naquilo que dizes hoje. E se calhar até é melhor que assim seja: conheço muito mais gente que acredita em Deus do que gente que se comporte como se Ele exista.

quarta-feira, outubro 27, 2004

O saber está na Rua  

Nunca foi fácil ser-se judeu. A condição judaica contém em si mesma algo de intrinsecamente especial, muito difícil de definir. Algo que lhes dá uma identidade própria, única, mais própria e mais única do que para qualquer outro povo. Algo que lhes dá uma capacidade de auto-preservação absolutamente inédita. Algo que, contudo, lhes torna imensamente difícil essa preservação. Difícil por causa dos outros povos, dificílima por causa deles próprios.
Devo dizer que nunca conheci bem pessoalmente nenhum judeu. Devo dizer também que, desde há anos, o estado israelita deixou de ser para mim um projecto heróico e passou a irritar profundamente o meu auto-porclamado humanismo. Porém, aquilo que conheço da história e da natureza do povo judaico apaga em mim qualquer pulsão anti-semita.
Vem isto a propósito de eu ter encontrado aqui na blogoesfera alguém que considero como um arquétipo daquilo que eu penso que a identidade judaica tem de mais valioso: a vontade de fazer bem feito, a vontade de ver as coisas como elas são, na sua profundidade, a busca do auto-conhecimento, a capacidade e gosto de questionar tudo, a abertura de espírito, a honestidade intelectual.
Esse alguém é o meu amigo bloguístico Nuno Guerreiro, um bom português e um bom judeu, com quem gosto de ficar a conversar e que morou e mora para os lados da Rua da Judiaria. É uma Rua por onde passo todos os dias e que hoje festeja o 1º aniversário. Por esse facto e por ter um grande blogue, mando eu um abraço de parabéns ao Nuno.

Hoje na Terra 

Há dias e dias. Há quartas e quartas. Há terras e terras. E hoje, dia em que me diverti a contrapôr um "evangelho social" a um "evangelho neo-liberal", ambos apócrifos, ambos demagógicos, verifico que os meus colegas, esses falaram de assuntos mais sérios.
O Timshel fala-nos da escola enquanto factor de competividade e enquanto catalizador de maior injustiça social. Devo dizer que é um assunto que me preocupa. Por um lado a monumental ineficiência do sistema educativo público tem destruído e continuado a destruír a nossa competitividade enquanto país e enquanto sociedade. Por outro, o inevitável refúgio no sistema de educação privado (para quem pode, claro!) é uma fonte de desigualdades de oportunidade ainda maiores no futuro. Não só pela assimetria de preparações educativas como pela interiorização pelas actuais crianças e jovens, de elitismos hereditários e inferioridades perenes e inultrapassáveis. É grave isto. E talvez a proposta do Timshel seja a que nos resta.
O Miguel, num texto desencantado, de quem anda nisto já há anos, à espera da mudança da maré, fala-nos duma coisa bem importante: do clero que nos oficia. E que nos preocupa. "porque às vezes é preciso reduzirmo-nos à insignificância das nossas palavras. e de que servem essas palavras se o eco que temos é um muro de indiferença cúmplice.(...)há quem nos diga, nós somos a verdade e a vida, como se não pudessemos nós defender a vida e a verdade, amando de modo diferente, acreditando de forma diversa". Mais à frente: «a igreja é a própria culpa», gritava a autora. não, não é. a culpa transportamo-la nós, desejamo-la nós. e insistimos em viver assim, na culpa. adiante: dizia-me em tempos um padre que tinha abandonado: «nunca tive dúvidas de que queria ser padre! até o ser» (...) "a falta de padres obriga a uma rápida colocação em paróquias (às vezes, mais do que uma paróquia), com o necessário acompanhamento de movimentos e outras instituições ligadas à igreja. «o modelo pastoral é desadequado, as pessoas não se sentem bem e procuram outras coisas», critica quem por lá anda ou andou. os bispos preferem pensar de modo mais complexo - para evitar simplismos. e para evitar soluções". Brinquem, brinquem. E depois não se queixem.
Já o Fernando oferece-nos um dos mais belos textos que tem passado por aqui. Um texto que ele sabiamente colocou a seguir ao do Miguel. Para que a gente não perca a esperança, ou melhor, não perca de vista o essencial de tudo isto. Um texto bom para leigos que, apesar do resto, querem fortalecer a sua fé: "Podemos blasfemar contra Deus, contra as suas barbas, ou pura e simplesmente arrancar os nossos pêlos perante o mal que presumimos que tolere no mundo. Podemos dizer que Cristo não o era. Mas não podemos fazê-lo contra o Seu Espírito. Não contra o Amor. Podemos amaldiçoar o dia em que nascemos e o dia em Deus criou o mundo, podemos recusar-nos a conversar com Deus ou com o mundo, mas não podemos amaldiçoar o amor, nem interromper de vez o diálogo que ele sempre quer estabelecer connosco. Se o fizermos cairemos na alçada dura da condenação".
Mas a fé dos leigos não chega para que a Igreja seja o Corpo de Deus...

terça-feira, outubro 26, 2004

Globalização e virtudes teologais 

O meu manifesto ideológico na TdA, encontrou naturalmente alguma oposição. O meu amigo Timshel dedicou um post resposta em 24 de Outubro, e temos continuado às “turras” no seu campo de comentários. Por sugestão dele, condenso num post aqui do Guia a minha argumentação em defesa do meu ponto de vista apresentado na TdA de 13 e sobretudo de 20 de Outubro. Uma nota apenas: em toda esta minha argumentação não estou a considerar sequer o caso português. Portugal é um caso distinto na Europa. Aqui nem se pode dizer que existe capitalismo. O que aqui existe são dependências do Estado, proteccionismos discricionários deste, monopólios e oligopólios. Falar de capitalismo português, tal como de welfare state português, isso são abusos de linguagem. O nosso problema aqui não vem nem do capitalismo nem do modelo social. O nosso problema é...mas disso não irei falar!

Camarada Tim,

Aquele meu manifesto na Terra, além de excessivamente longo, talvez não tenha sido suficientemente claro, até porque nele coloquei reflexões que ia fazendo à medida que as escrevia... Em face dos teus (muito aguardados) comentários venho realçar o seguinte:
Eu entendo que o efeito da globalização não vai ser enriquecer os mais ricos e empobrecer os mais pobres. O que vai fazer é uma redistribuição global da riqueza da qual a Europa vai e está já a saír prejudicada. Deixemo-nos do nosso típico eurocentrismo bairrista: quando falamos de ricos e pobres não devemos referirmo-nos apenas à sociedade do nosso bairro, da nossa cidade, do nosso país, nem sequer do nosso continente. Devemos sim referirmo-nos à sociedade global: ao nosso 1º Mundo, ao 3ºMundo e a um pouco falado 2ºMundo onde vivem incontáveis milhões de pessoas, muito mais pobres do que nós e para onde a economia e ,consequentemente, a riqueza se estão a deslocalizar. Dizes que o meu texto é pessimista mas apenas naquilo que nos toca directamente, pois para toda essa gente, chineses, indianos, indonésios, paquistaneses, europeus de Leste, malaios, etc. para toda essa gente o próximo século será sem dúvida de grande desenvolvimento económico social e humano. Nesses países irá aumentar sem dúvida a justiça social.
E isso pelo simples motivo de que o capitalismo não é tão estupidamente selvagem como tu o dizes. Conforme penso que demonstrei nas duas últimas partes do “manifesto”, o capitalismo vive do consumo. Para haver consumo tem de haver distribuição de riqueza, tem de haver estabilidade laboral, tem de haver bem-estar geral. E não duvido que nessas sociedades do tal 2ºMundo isso virá a acontecer.
Acredita meu caro Tim que o tenebroso capitalismo não está a ir para o Paquistão apenas para explorar as criancinhas. Isso será apenas um aproximação de curto prazo. O capitalismo está mas é a instalar nesses países com enormes populações e bom potencial humano, a sua capacidade industrial para que nesses países surja um forte desenvolvimento económico e surja uma nova e incontável massa de consumidores. Repara bem: assim grosso modo 2,5 bilhões de pessoas contra 250 milhões na Europa Ocidental!
O problema desta globalização é o que vai acontecer aqui na Europa e no 3ºMundo. Aí sim, sou pessimista.
Quanto ao 3ºMundo, aquele que não interessa para nada ao capitalismo, a África sobretudo, o problema é que a Europa vai ter muito menos dinheiro e vontade para os ajudar, enquanto que esses novos países emergentes, que filosoficamente estão muito longe da ética humanista e cristã, duvido muito que se preocupem sequer com esses desgraçados.
Já na Europa, com a fuga da indústria e perda da criação de valor, aumentará o desemprego, as despesas sociais, e penso que com excepção duma reduzidíssima minoria, hoje desconhecida e intangível, detentora do capital das grandes corporações no anonimato das bolsas, todos nós seremos afectados, desde os que estão hoje já abaixo do nível de pobreza às classes médias e até altas. Aqui entre nós, por muito que te custe a crer por aí: em Portugal neste ano de 2004, as classes média-alta e alta já estão também a sentir a crise! Nem acho nada mal...
E digo-te: não há taxas, nem lutas nem retórica inflamada que mude um facto inelutável – vai haver muito menos riqueza para distribuír! Eu gosto de ouvir as tuas imagens do capitalismo ser um lobo selvagem ou uma raposa na capoeira, mas eu penso que essa é uma visão extremamente redutora. O problema essencial é que estes 50 anos de bem-estar tornaram-nos a todos, capitalistas e trabalhadores, em materialistas, egoístas e individualistas. O bem-estar tornou-nos mais gordos e endureceu-nos o coração. Para mim é tão culpado o capitalista que por meia dúzia de patacos fecha uma fábrica para abrir outra na China como o sindicalista que, cego pelo egoísmo corporativo, protesta contra os imigrantes ou que nega a existência dum problema real, dando assim um pretexto excelente para o capital se pirar daqui.
Quanto às leis e regulamentações internacionais, de que falas tanto, sabes bem que as leis se fazem para os países. As leis internacionais tem uma eficácia quase nula. E o problema de que estamos a falar não é um problema nacional nem comunitário, é um problema trans-nacional. Nunca contaremos com a cooperação da China, ou da Índia, ou de nenhum dos outros para os resolver. Eles não vão querer cercear o único instrumento de desenvolvimento que pensam estar ao seu alcance.
A única maneira seria nacionalizar e colectivizar tudo à boa maneira soviética. Ora isso já nós sabemos que não resulta!
Concluo: o paradigma de desenvolvimento económico e humano na Europa está a mudar. O futuro é de empobrecimento em favor do enriquecimento de outras zonas do globo. Agora o que há a fazer é tornar tudo isto menos indolor e o mais partilhado possível entre todos. Só vejo isso ser possível com o reancender do espírito cristão na sociedade civil europeia, um espírito de partilha, de simplicidade, de austeridade, de generosidade. As virtude de que tu falas, a fé, a esperança e a caridade irão ter, espero eu, uma nova e renovada significação.

segunda-feira, outubro 25, 2004

Terra de 2ªfeira 

Diz o Marco:
Não me parece que alguém possa ser excluído de Deus por possuir muitos bens materiais; parece-me mais plausível que uma pessoa se auto-exclua, de Deus por apego excessivo aos seus bens materiais (sejam muitos ou poucos).

Diz o Zé Filipe: A primeira realidade é o acolhimento do Outro. A espiritualidade cristã não busca nenhuma auto-iluminação, nenhuma auto-elevação espiritual. Tão pouco busca energias cósmicas ou passar pela vida evitando o sofrimento. A espiritualidade cristã é a vivência com outros, na relação com outros e com a natureza, de um estilo de vida coerente com a sua mensagem de Amor. A mensagem da Ressurreição é também essa: a morte, a separação suprema entre as pessoas, não terá a última palavra. Assim, a questão do cristianismo não é tanto de religião, mas sobretudo de humanidade. Não é tanto uma questão de re-ligação de cada pessoa a Deus, mas sobretudo de encontro de Deus na relação entre as pessoas. Por isso se diz que ninguém se salva sozinho, ou que ninguém é livre sozinho. A nossa liberdade não acaba onde a do outro começa mas, precisamente ao contrário, a nossa liberdade só é plenamente vivida enquanto participa na liberdade do outro. Não sou plenamente livre enquanto houver quem vida oprimido.

Digo eu: graças a Deus é 2ª feira

Orgulho e preconceito 

Naquele tempo, Jesus disse a seguinte parábola para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros: «Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu e o outro publicano. O fariseu, de pé, orava assim: ‘Meu Deus, dou-Vos graças por não ser como os outros homens, que são ladrões, injustos e adúlteros, nem como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de todos os meus rendimentos’. O publicano ficou a distância e nem sequer se atrevia a erguer os olhos ao Céu; Mas batia no peito e dizia: ‘Meu Deus, tende compaixão de mim, que sou pecador’».
Eu vos digo que este desceu justificado para sua casa o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado.

(Lc 18,9-14)

Este trecho do Evangelho, ontem lido na missa, é para mim um daqueles que me interpela mais fortemente. Há tempos, num contexto muito próprio, a leitura deste trecho provocou em mim uma forte emoção que deu origem a uma espécie de oração que coloquei aqui no Guia. Hoje apetece-me de novo rezá-la, pois continuo a precisar daquilo que nela peço:

Meu Deus e meu Pai,
perdoa-me porque pequei contra Ti
e contra aquilo que de Ti existe em mim.
A Fé que em Ti tenho
não deveria apenas consolar o meu coração
nem satisfazer a minha inteligência.
Deveria sim fazer-me tremer
por não ter a minha vida segundo ela.
Deveria sim fazer-me envergonhar
por querer ser rico em espírito,
por a minha caridade ser uma promessa adiada,
por a minha misericórdia ser tão precária,
por a minha mansidão ser tão calculada,
por o meu amor ser tão condicional,
por a minha humildade ser capa de tão imenso orgulho.
Tão imenso e absurdo é o meu orgulho,
orgulho de ter Fé, orgulho de ser humilde,
que chego a não recear pela minha salvação.
Não valho assim mais do que o beato de sacristia
que julga ter já guardado o seu lugarzinho no Céu.
Meu Deus e meu Pai,
eu devia simplesmente agradecer
as graças e os dons que me destes
e não comprazer-me nelas
e não orgulhar-me deles.
Meu Deus e meu Pai,
Tu deste-me o dom da Fé
e ela aperfeiçoa-me, ela alimenta-me.
Mas, por essa Fé, eu deveria consumir-me,
alimentando dela o meu próximo.
Triste pecador é aquele que, como eu,
tem uma Fé demasiado tranquila
e se serve dela só para si.
Meu Deus e meu Pai,
perdoa-me por ser assim.
Transforma-me.

sexta-feira, outubro 22, 2004

Agradeço 

verdadeiramente a quem me relembrou isto:

Somos atribulados por todos os lados, mas não desanimamos; somos postos em extrema dificuldade, mas não somos vencidos por nenhum obstáculo; somos perseguidos, mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados.
Como desconhecidos e, no entanto, conhecidos; como agonizantes e, no entanto, estamos vivos; como castigados e, no entanto, livres da morte; Como tristes e, no entanto, sempre alegres; como indigentes e, no entanto, enriquecendo a muitos; nada tendo, mas tudo possuindo.

2 Cor 4,8-9; 6,9-10


Sem título e sem tempo. 

Vivo tempos sem tempo. Sem tempo para pensar. Sem tempo para ler. Sem tempo para escrever. Sem tempo para rezar. Sem tempo para amar. Sem tempo para me deixar amar.
Vivo tempos que digo serem a hora da verdade mas que me afastam dela. Vivo tempos de luta e também de luto. Uso a primeira para esquecer o segundo, um luto já distante e um outro que se adivinha. Mas se uso a luta, estou também usado, agastado, embotado por ela.
Estou na engrenagem que escolhi, cujos dentes conheço um a um. Corro por ela, orgulho-me por vê-la a rodar bem, exaspero-me por ver que ela não sai do mesmo sítio. Espero por alguém que irá trazer um veio por onde ela se mova enfim e faça mover. Mas espero já há tanto tempo que me apetece fazer pará-la um pouco para descansar e pensar melhor. Mas não o faço pois receio o que aconteceria se ela parasse, o que aconteceria à engrenagem, aos que estão nela comigo, a mim próprio.
Como há já um ano não sei se valerá a pena tudo isto. Mas tratamos de tudo, dia após dia, como se valesse a pena. Mantemos ainda o rumo e congratulamo-nos por isso. Mas sabemos bem que mesmo que o quiséssemos, nunca poderíamos mudá-lo.
Entretanto esta aceleração dos dias, esta multiplicação das frentes, esta complexidade crescente, tudo isso me excita e motiva ainda mas começa a deixar marcas visíveis até para mim próprio, de quem sou o pior dos juízes.
Recordo hoje e volto a rezar aquela oração, tão simples, dos sem-papel em Missnanga:

Meus Deus,
Livra-me do medo.
Livra-me da frustração.
Deixa-me chegar ao meu destino.

quarta-feira, outubro 20, 2004

And now for something completely different! 

Isto são ainda sequelas de ter visto ontem à noite na 2: o ex-Monty Michael Palin a conversar com o Dalai Lama, a caminho dos Himalaias. Mas não só. Hoje é dia de Terra da Alegria e convém lá dar um salto, nem que seja para baralhar um bocado as ideias.
O Carlos inicia-se hoje na produção de evangelhos apócrifos. O Rui fala de peregrinar, de caminho e silêncio, e de como este último é importante para se conversar. Do celibato, por exemplo. O Fernando fala das coisas que os católicos querem esquecer, mas cujo testemunho devem receber pois existiram. O Timshel fala da competitividade e eu falo da falta dela. Lendo com atenção o seu texto, simples e cristalino, e o meu, pesado e profético, dá-me ideia que no fundo estamos a falar da mesma coisa.
À consideração dos leitores.


segunda-feira, outubro 18, 2004

Muita Terra 

Hoje a Terra da Alegria traz-nos um excelente texto do Zé Filipe. Mais uma lição de moral, desta feita sobre a complexidade. Ele, como eu, acredita que a verdadeira unidade só é possível na verdadeira diversidade.
Aliás, ele aflora um assunto que me interessa bastante: o porquê da indigência do debate, político, religioso, social, cultural, neste pobre país que é o nosso. E se é verdade que a recusa da complexidade, o desejo da redução simplista, mata muitas vezes o debate, por outro lado, a constatação passiva da imensa complexidade do mundo leva muitas vezes o debate para o limbo da inconclusividade. Na minha modesta opinião, deve haver um justo equilíbrio entre o ver as árvores e o ver a floresta. A visão da complexidade do mundo e da vida não é um fim em si mesmo, é um requisito fundamental para a descoberta da simplicidade que nos transcende.


Extra ecclesiam nulla salus 

Mesmo em latim soa mal dizer-se que não há salvação fora da Igreja. O bom Frei Bento Domingues, que se está a tornar para mim uma espécie de guia espiritual, insurgia-se ontem contra os integristas católicos que rosnam contra os responsáveis de Fátima pelas suas iniciativas ecuménicas e de diálogo inter-religioso, na senda aliás da espantosa iniciativa de João Paulo II do encontro de Assis. Não será de espantar que estes émulos dos salafitas islâmicos venham sobretudo do além-atlântico, onde a Lei de Talião, revogada por Cristo, parece ressurgir de novo no coração dos homens. O que espanta é que estas movimentações indignas não sejam repudiadas com mais vigor pelas cúpulas da Igreja. Se o permitirmos, estes "guardiões" da Palavra de Cristo tornar-se-ão no Seu caixão. Como pretender que o catolicismo (universalidade) possa sê-lo sem inclusão, sem se abrir e sem se oferecer aos outros?
Citando o Frei Bento:

Mas a Fátima vai quem quer. E ao tornar-se um centro ecuménico e inter-religioso, o diálogo deixa de ser uma reserva de alguns especialistas e de altos dirigentes religiosos. É tarefa de pessoas e grupos que, de diversas famílias religiosas, se juntam para rezar. E, como diz o filósofo L. Wittgenstein, a oração é o pensamento do sentido da vida. Os que se reúnem com vontade de rezar abrem caminhos de paz entre as religiões. Fazem delas focos de paz entre as nações.

Já agora, o ecumenismo não se vive só em Fátima, o Tiago encontrou-o ontem em Cedofeita.

sexta-feira, outubro 15, 2004

Carta a um amigo 

Caro B.,

Se eu estivesse à tua frente não saberia com certeza o que te dizer. As grandes dores, minhas ou alheias, sempre me deixam silencioso. Contudo, tu escreveste-nos a partilhar essa tua perda. Sinto por isso que, para além das minhas orações, eu deveria dizer-te algo, neste momento.
Sendo um homem de verdadeira Fé, tu sabes que, como disse uma vez um outro grande amigo, o vizinho do mar, não é a morte que nos aproxima da fé; é a fé que nos explica a morte. Tu sabes também que a verdadeira pergunta a fazer não é porquê a nós? mas sim porque não a nós?. Tu sabes isso, como eu o sei. Contudo, subsiste a dor, pela perda, pela ausência, pelo que ficou por fazer ou dizer. Sabemos isso ambos, novos que somos ainda, pois a Morte já nos tocou de perto. A ti, contudo, ela tocou ainda mais perto, a ti ela levou-te o teu Pai, tão demasiado cedo, tão antes de tantas coisas. Daí uma dor maior ainda, daí um porquê? diferente daquele que nos ensina a fé que temos.
Essa tua dor é uma dor que eu ainda não tive mas que, às vezes, como que antevejo, pois grande é o medo de se perder aquilo que se ama. E no meu caso, como no teu, grande é a falta que o meu Pai me faz como também grande será a falta que eu lhe faço a ele. Por isso penso às vezes nisso, nisso em que não quero nem pensar.
Imagino que contigo se deve passar o mesmo que se passa comigo: muito do que eu sou devo-o ao meu Pai por ele ser o que é e por me amar como me ama. Eu sei hoje que amo os meus filhos exactamente com o mesmo amor com que eu e os meus irmão fomos e somos amados por ele. Aquilo que dou é aquilo que dele recebi e recebo. A felicidade dos meus filhos, naquilo que me diz respeito, deve-se assim também ao meu Pai e imagino eu que isso chegará aos meus netos. Que as mães não me entendam mal, mas eu acredito profundamente que o amor paternal se transmite ao longo das gerações. O amor maternal também, com certeza, mas o amor maternal é algo que acredito ser mais intrínseco, mais incondicional, de geração expontânea, sempre renovado de geração em geração. O amor paternal, ou antes, a sua manifestação por essa coisa simples que é a proximidade do pai, é algo que nem sempre ocorre, ou ocorre de forma mais disfarçada pelo ethos masculino. Por isso eu digo que quando existiu por uma vez de forma aberta, esse amor sucede-se pelas gerações.
Mas já estou a divagar. Pois o que eu queria dizer-te era outra coisa. Quando se perde um Pai, pode-se ou não acreditar que ele estará junto de Deus, e que o veremos de novo um dia. Claro que tu e eu acreditamos nisso e tal é uma ajuda preciosa num momento como é este que atravessas. Mas há uma outra coisa, válida para crentes e não crentes, uma coisa incontestável e muitas vezes consoladora: é que quando se perde um Pai ele continua connosco, dentro de nós, na essência do nosso ser. Não o perdemos totalmente pois ele continua em nós.
Era isto que te queria dizer e enviar-te também um forte abraço.


quarta-feira, outubro 13, 2004

A propósito... 

...vou ouvindo isto, a bem da minha sanidade:

Here we are,
stucked by this river,
You and I,
underneath the sky
that´s ever falling down.
Through the day,
as if on an ocean,
waiting here,
always failing
to remember why we came,
I wonder why we came.
You talk to me,
as if from a distance,
and I reply
with impressions
chosen from another time.


Brian Eno


Procura-se tempo 

Depois de dois dias ausente no estrangeiro, chego ao escritório bem cedo. Ligo a net, vejo os mails, leio as gordas do Público, leio a TdA de 2ªfeira e de hoje e, todo satisfeito com o que li, entro no blogger, deviam ser umas 9h30. Mas não escrevo nada pois começam-me logo a caír telefonemas, mais mails, reuniões, chatices várias, etc. Já passa das 19h, já se adivinha mais um serão e vejo agora que tinha deixado o blogger aberto, sem nada escrito, durante todo este tempo. A falta de tempo é uma coisa tramada...
Mas vou agora fazer uma pausa, pois tenho que dizer aqui que a edição de 2ª feira da Terra, esteve antológica graças ao Afonso, ao Zé Filipe, ao Lutz e ao Marco. A imprimir e guardar. Pena é não poder hoje comentar algumas coisas extraordinárias ali ditas. Mas não queria deixar de dizer isto.
Também os meus colegas de 4ª feira não estiveram nada mal, não senhor.
Há alturas em que penso que esta coisa dos blogues deveria ser uma actividade remunerada, com dedicação exclusiva e tudo...
E, lamentavelmente, é tudo por hoje.


sexta-feira, outubro 08, 2004

Gone fishing 

Com a idade vou perdendo o gosto pelas surpresas. Digo isto porque acabo de ter uma que me entristeceu: o blogue dos Bengelsdorff vai acabar! Ainda há pouco lhes saudei o 1º aniversário e o que então disse, mantenho-o hoje. Vão fazer-me falta, os malandros! Sobretudo o Vincent e o David, duas faces duma mesma boa moeda. Tal como o Lutz, eu vou reter uma frase do post de despedida do Vincent: "Os blogs podem ser vistos de muitas formas, mas o que mais me interessa é que uma nova forma de um dos maiores bens que se pode ter se manifestar: a amizade".
Por essa mesma razão é que vou ter saudades deles. Um forte abraço para os quatro.


quinta-feira, outubro 07, 2004

Sofrendo na Terra 

Tenho assistido com interesse a um debate entre a malta amiga lá da terra sobre o atributo de Deus que mais engulhos nos causa a nós crentes: a omnipotência divina.
Realmente, partindo-se duma premissa basilar da Fé, a de que Deus nosso Pai é Bom e quer o Bem, o nosso Bem, é verdadeiramente difícil perceber como conciliar o conceito de omnipotência, decorrente do entendimento de Deus como criador e senhor do Universo, com a ocorrência do sofrimento humano, aos níveis aterradores que conhecemos do passado e do presente. No fim, a questão é de como é que sendo Deus o Bem imanente e omnipotente, é então possível o Mal?
A fé dos homens tem percorrido veredas sem fim à procura duma resposta. Há a tentação dualista, de considerar que há um Deus da Luz e um Deus das Trevas, numa luta cósmica onde o homem pode e deve ter um papel simultaneamente fundamental e sacrificial. Há quem ponha simplesmente em causa o atributo da omnipotência, desenvolvendo até, como o meu amigo Timshel, um conceito de omni(m)potência divina e procurando achar um fio na meada das causalidades sucessivas. E há aqueles que, tal como S.Tomás de Aquino e Nicolau de Cusa, conseguem viver bem com a absoluta incognoscibilidade de Deus e dos seus desígnios, se é que os tem. Falei já (no penúltimo post) e voltarei a falar daquele extraordinário artigo de frei Bento Domingues onde ele cita Tomás: “De Deus sabemos sobretudo o que Ele não é. O que Ele é, permanece para nós totalmente desconhecido. Por isso, estamos unidos a Deus como a um desconhecido”. São estes que nos momentos duros nos consolam dizendo aquela frase terrível: os desígnios de Deus são insondáveis! Tanta gente se tem revoltado contra a fé e contra Deus ao ouvir isto. Pois se não se pode conhecer o que Ele quer, para quê acreditar nele?

E eu, que penso no meio disto tudo? É bem certo que convivo bem com a incognoscibilidade última de Deus. Nunca me atraíram os excessos de teologia ou as aproximações gnósticas ou cabalísticas. Eu acredito no que nos conta Mateus: Bem aventurados os puros de coração pois verão a Deus. Mas não nesta vida, certamente, mas sim na outra, quando regressarem a Ele. Aí sim, espero ser digno de poder vê-Lo tal qual Ele é, signifique isto o que significar. Até lá, não tenho grandes veleidades em saber o que Ele quer para mim mas talvez sim discernir o que Ele quer em mim e o que Ele quer de mim.
Agora, quanto à injusta repartição do sofimento humano, estou hoje como Job acabou por ficar: de joelhos. Já aqui falei muitas vezes como sinto Deus como Pai e como isso invade a minha visão da relação entre nós e ele. Se há coisa no mundo que gosto é de ser pai, também. E por isso acho que, como eu, Deus se compraz na nossa semelhança consigo. Como eu, Deus não nos quer na redoma dum Éden e quer-nos livres para realizarmos plenamente a nossa condição humana. E o preço da liberdade é o risco e o sofrimento. Sofrimento que, todavia, pode ser tanto que mata essa liberdade, quando é suficiente para nos destruír a condição humana que Ele nos deu.
E aí está o meu ponto: não há para mim maior sofrimento que o sofrimento dos meus filhos. Mas muitas vezes não posso nem devo aliviá-los duma carga que eles tem de aprender a suportar para assim virem a ser verdadeiramente humanos. Ora, por analogia, tenho para mim que deve ser também assim com Deus, que Ele sofre também connosco. E que a manifestação da sua Graça não precisa de ser mais do que uma inspiração sobre como enfrentar esse sofrimento por forma a que ele não nos destrua enquanto seres humanos mas antes nos faça crescer e aproximar-nos Dele.
Mas, perguntar-me-ão, e quanto ao sofrimento absoluto? O sofrimento dos de Darfur, dos que perdem os filhos por não terem com que lhes dar de comer? Sinceramente não sei como se pode manifestar aí a graça de Deus. Talvez através de coisas minúsculas, a que aqui não damos valor, como o dar a mão a quem a estende, como chorar as lágrimas de uma mesma dor, como oferecer a vida a quem verdadeiramente nunca a teve. Tudo coisas pequenas que nós aqui, que nos revoltamos tão confortavelmente perante a impassibilidade de Deus, nós mesmos é que as podíamos fazer. Podíamos não: devemos fazer.
E eis talvez aqui a minha resposta ao problema do sofrimento humano: Deus que sofre connosco só pode acorrer ao sofrimento do mundo através dos que aqui estão – nós próprios. E é da nossa própria impassibilidade, indiferença e até crueldade, que nos devemos queixar, não da de Deus nosso Pai.
Afinal, já somos crescidinhos.

quarta-feira, outubro 06, 2004

Escrevendo na terra 

Não há cristianismo sem Revelação; e sem divergência.
Não há cristianismo sem cansaço; e sem sobressalto.
Não há cristianismo sem o ideal; e sem o possível.
Não há cristianismo sem Razão; e sem Amor.
Não há cristianismo sem solidariedade; e sem responsabilidade.

Hoje lê-se isto na TdA. É por isso que eu preciso cada vez mais dela.

segunda-feira, outubro 04, 2004

Veritas filia temporis 

A verdade é filha do tempo. Se é assim mesmo (e o JPP assegura-nos que sim), então justifica-se desta forma o meu silêncio perante as fascinantes coisas que tem sido debatidas pelos meus companheiros da terra, como hoje se dá mais um exemplo, pelo Zé Filipe, Lutz e Marvi.
Quero eu dizer que aqui pretendo sempre falar em verdade e que o tempo tem-me desaparecido por entre as mãos. Não queria contudo deixar passar uma coisa relacionada com alguém que eu cito muito por aqui, o frei Bento Domingues. É que à medida que o vou lendo no Público cresce a minha admiração pela maneira como este homem de Igreja constrói e comunica a sua Fé. Muitas vezes a Fé é tão importante para nós que a queremos defender a todo o custo, preservá-la da dúvida, protegê-la das arestas do mundo. E nesse cuidado desviamos os olhos daquilo que nos pode desafiar a Fé, tal é o medo de a perdermos. Mas ao fazermos isso estamos a menorizá-la e a desvalorizar a confiança que devemos ter em Deus e em nós próprios. Estaremos assim também a torná-la mais tímida e, no fim, a enfraquecê-la. É por isso que eu acho que não devemos recear os índexes, nem conhecer melhor o lado mais negro da história da nossa Igreja, nem conhecer as razões daqueles que não creem. Se conhecermos isso tudo e a nossa Fé permanecer, essa será então uma Fé muito mais forte, uma Fé em nome da qual vale a pena orientar a nossa vida.
De há 3 semanas para cá, o frei Bento tem-nos dado o vivo exemplo disso, revelando-nos ele um caso dum sacerdote, um pastor luterano, que vinha exercendo o seu ministério sem acreditar verdadeiramente em Deus. E é sobre isso que ele medita sabiamente naquilo que chamou, e bem, de pastoral da incredulidade (, e partes). Espero voltar a este extraordinário texto.
A ler pelos crentes, para aprendermos a ter coragem na nossa Fé.

sexta-feira, outubro 01, 2004

Olá, cá estou eu 

Εισ-με ρεγρεσσαδο, ou escrevendo em língua de gente, eis-me regressado. De Atenas, lembram-se? E em boa hora, pois embora não saiba como é o resto da Grécia, Atenas é um assim um bocado..., como diria o imortal Alpedrinha do Eça de Queiroz, Atenas é "pior que Braga". Melhor dizendo, é uma espécie de enorme Armação de Pera, mas com a Acrópole no meio. E deixa marcas: por exemplo o meu computador veio infectado com três “cavalos de tróia” detectados ontem já aqui pelo Norton. O Agamémnon, lá de onde estiver, deve orgulhar-se todo pelo facto da sua táctica se ter transformado numa tradição ainda hoje praticada com tanto engenho. Raios partam o miceno...
Mas mudemos de tom pois isto é um blogue sério. Ao chegar à Portela, vinha já com a habitual sensação de que “nada melhor que o nosso Portugalzinho”, sensação essa que perdura pelo menos por 12 horas. O que perdura mais, felizmente, é a sensação de chegar a casa e ser esperado pela minha mulher e pelos meus filhos, em vez de, como o tal Agamémnon, ter de enfrentar a insuportável Clitemnestra e os estranhos Orestes e Electra. Bem feito para ele. Lá em minha casa somos todos muito mais amigos uns dos outros!
Agora o que também deu muito prazer foi verificar que efectivamente, indubitavelmente, inquestionavelmente, inequivocamente, não há terra como a nossa. Pois vejo que na minha ausência os meus estimados conterrâneos estiveram todos eles em grande estilo. E quero dizer isto publicamente: eles escreveram lá coisas extrordinárias, que me fizeram pensar e hão-de me fazer escrever por aqui. Assim haja tempo.


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