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domingo, setembro 28, 2003

Eu sei. 

Eu sei que nada sou,
Senão Teu filho,
Eu sei que nada tenho,
Senão aquilo que me destes.
Eu sei que nada valho verdadeiramente,
Se não o valer aos Teus olhos.
Eu sei que não conseguirei vencer os meus pecados,
Senão fôr a Fé que em Ti tenho.
Eu sei que nada melhor posso levar desta vida,
Senão o caminho até à Tua presença.

Eu sei que não conseguirei ser bom pai,
Se não souber ser teu filho.
Eu sei que não saberei amar a minha mulher,
Se não souber como tu nos amas.
Eu sei que não saberia nunca sofrer,
Se não soubesse como o Teu Filho sofreu por nós.
Eu sei que de tudo desitiria, até de mim mesmo,
Se Tu não estivesses em mim,
Se eu não estiver em Ti.

Eu sei tudo isto.

Saber não chega: eu preciso viver em nome daquilo que sei.

A minha Fé alimenta-me: não me deveria antes consumir?


sexta-feira, setembro 26, 2003

A razão do ecumenismo (3ªparte) 

A Igreja Cristã, cuja forma inicial tudo deve a S.Paulo, que transformou de cima abaixo aquilo que não iria passar de mais uma seita judaica, começou por se desenvolver capilarmente no vastíssimo Império Romano, já numa altura em que ele começava a ser cada vez menos romano e cada vez mais império, absorvendo e tolerando todas as culturas e religiões que ia abarcando com a sua formidável expansão.
Aliás, a tolerância religiosa romana merece ser analisada até porque vem desde a génese da república e expansão romanas, contrariamente à imagem popularmente difundida durante séculos. Fez sempre parte essencial da natureza pragmática dos romanos a capacidade de adquirirem e utilizarem as técnicas civis ou militares, as culturas, as organizações políticas dos povos por eles vencidos ou dominados desde que se revelassem superiores às suas próprias. Da mesma forma e como povo supersticioso que era, os romanos nunca tiveram pejo em adoptar e adaptar deuses de outros povos e acrescentá-los ao seu panteão, quanto mais não fosse para disporem também da sua protecção nas sortes das armas. Quando a simplória república romana engoliu de um trago a Grécia e a sua sofisticadíssima civilização e cultura, imensamente superiores às suas, os romanos absorveram e adoptaram praticamente toda a mitologia grega exactamente da mesma forma que adoptaram formas arquitectónicas, técnicas militares, expressões artísticas, etc. Curiosamente não adoptaram o caótico sistema político grego esse sim francamente inferior à república romana.
Enquanto a expansão não desromanizou Roma, a sua república foi com efeito um sistema político fantásticamente estável, com processos de legitimação de poder e de tomada de decisões de Estado verdadeiramente únicos e que claudicaram apenas quando a expansão territorial se tornou de tal forma grande que os tornou obsoletos pelo simples necessidade absoluta de uma autoridade centralizada e durável a qual nunca teria sido possível com o sistema multipolar da república e com os seus consulados anuais.
E foi na sequência duma crise, que durou mais de um século, que os romanos encontraram um outro sistema político, centrado na figura do imperador, que lhes deu mais 3 séculos de expansão e outros mais de existência. Esse sistema contudo tinha lacunas essenciais quanto a aspectos tão básicos como a legitimação do poder imperial e a sua transmissão ou sucessão. Foi logo na sua primeira fase, com a dinastia julio-claudiana e as sua autoproclamada ascendência à deusa Vénus que se começou a resolver esta questão. O imperador foi considerado como pré-divino em vida e plenamente divino após a sua morte, havendo sempre alguém socialmente prestigiado a apresentar-se como testemunho da ascenção do imperador morto aos céus, condição formal para que pudesse ser considerado divino.
É pois a partir daí que a dimensão religiosa ganha uma função reforçada na legitimação e consequentemente na estabilidade política do Império. E esta foi a fonte primeira das escaramuças iniciais com a Igreja Cristã: para a autoridade imperial ser inquestionada e inquestionável era necessário que a sua natureza divina fosse aceite e isso era algo que monoteístas como os judeus não o poderiam nunca fazer. É de notar que no início não havia uma percepção clara da distinção entre judeus e cristãos. Ora o facto da religião judaica ser a religião dum povo e não uma religião universalista e como tal proselitista, tornava a sua ameaça ao império irrelevante e portanto foi totalmente tolerada. Os problemas surgem quando se percebe o carácter distinto da religião cristã sobretudo porque universalista e, como tal, uma ameaça à estabilidade do império: os cristãos não só negavam a divindade imperial como, ao espalhar a mensagem de Cristo e fazendo novos convertidos, faziam outros negá-la.
Seja como for, com mais ou menos perseguições, que variavam consoante o ambiente político, a Igreja foi-se organizando, a mensagem do evangelho foi sendo aceite por cada vez mais cidadãos do império. Repare-se que a enorme dimensão e complexidade do império romano e as frequentes crises de sucessão imperial, tornavam difícil uma repressão sistemática e consistente aos cristãos, que também por isso se foram multiplicando.
Acontece inclusivé que durante largos períodos houve colaboração activa entre a Igreja e o Império. Este, mais do que hoje se poderá pensar, era claramente sub-administrado, ou seja nunca teve uma estructura administrativa forte que assegurasse de forma integrada as funções básicas de administração: colecta de impostos, obras públicas, etc. Para isso o Império apoiava-se fortemente nas confrarias ou congregações, normalmente de natureza profissional mas também confessional. Foi aqui que a Igreja quis e soube desempenhar um importante papel que lhe assegurou largos períodos de tolerância imperial e para o qual tinha uma utilidade enorme a sua organização celular em dioceses governadas por bispos, a existência por todo o império de grandes espaços físicos de reunião e comunhão de pessoas (as basílicas) e, por último, o estatuto de certa forma paternal do clero cristão perante os fiéis. Ou seja, a Igreja Cristã foi-se tornando numa organização de forte coerência interna, com uma motivação comum e que, estando espalhada crescentemente por todo o Império, lhe podia prestar inestimáveis serviços. Foi com efeito nestes tempos primordiais que nasceu uma atitude da Igreja que perdurou até hoje, pela qual a melhor forma de assegurar a propagação da mensagem divina nas melhores condições era a postura de colaboração com o poder enquanto ele não afrontasse ostensivamente os princípios cristãos.
É claro que houve regressões com períodos de grande repressão: o período de Diocleciano foi um deles. E foi-o porque num período de grande instabilidade política, este imperador criou o sistema da tetrarquia, com dois Augustos e dois Césares, emulando assim a governance do Olimpo pela parelha Zeus-Hércules e buscando assim, duma forma mais reforçada, legitimação à velha religião romana. Temos pois que esses períodos de repressão normalmente eram gerados por mudanças políticas no estado imperial e não por reacções deste a excessos ou posições de afrontamento vindas da Igreja.
É um facto muito curioso e pouco conhecido que as famosas perseguições aos primeiros cristãos se dirigiram não tanto à Igreja cristã institucional e ortodoxa mas muito mais às numerosas correntes e seitas heréticas saídas do cristianismo e que essas sim, muitas vezes por interpretações mais extremas e desequilibradas da mensagem de Cristo, chegaram a afrontar a estabilidade social do Império: foram os irenistas, os donatistas, os arianistas, todas as correntes gnósticas, etc.
O facto é que enquanto a Igreja se ia fortalecendo e expandindo, o Império Romano, esmagado pelas massas migratórias de povos bárbaros e sem nunca ter resolvido satisfatóriamente a questão fundamental da legitimidade imperial e respectivos mecanismos de sucessão, ia-se desagregando inexoravelmente em ciclos sucessivos de altos e baixos consoante a qualidades dos seus imperadores. Curiosamente, durante e após o término definivo deste processo de desagregação houve sempre duas atitudes na sociedade do império face ao Cristianismo: uns culpavam-no da decadência de Roma, outros refugiavam-se no seu seio para alcançarem serenidade e segurança naqueles tempos crepusculares.
Ora a determinada altura, apareceu um imperador, Constantino, que emergiu do colapso duma tetrarquia e que, devido a uma capacidade excepcional, conseguiu estabilizar o império. Este imperador teve a percepção que a Igreja Cristã poderia ser um aliado providencial nos seus desígnios e alterou profundamente o estatuto da Igreja Cristã, transformando o Cristianismo, pela primeira vez na história deste, em religião de Estado. Curiosamente, fê-lo antes de ele próprio se ter convertido, tal era o seu pragmatismo. Esta transformação da Igreja Cristã de entidade perseguida a elemento estruturante do Império Romano, modificou de forma profunda e irreversível a sua natureza. (continua...)

Quem me estiver a ler que me desculpe. 

Tenho contudo a sensação que não me tenho de preocupar muito com desculpas: só se fôr ao senhores do BLOGGER, pelo tabalho que lhes estarei eventualmente a dar.
O facto é que comecei com este blogue para pôr umas coisas que tenho escrito e, como gosto de acabar aquilo que começo, lá vai mais um capítulo da minha monumental obra "A razão do ecumenismo". No caso deste capítulo não se perceberá bem a sua relação com o tema mas acontece que é o capítulo que se segue ao anterior e aquele que antecede o próximo. Por isso lá terá de ser...
Continuo todavia com esperança de estar a falar só comigo...

quinta-feira, setembro 25, 2003

"O século XXI será o século da Religião" 

Pensando bem, sendo a blogosfera um ambiente propício a falarmos todos de uma forma e sobre assuntos que não falamos tão à  vontade quando estamos fisicamente com outras pessoas, é muito natural que algo que hoje é socialmente menos compreendido como a afirmação duma fé religiosa (sobretudo a cristã) se faça mais facilmente na blogosfera do que "sob o sol", como dizia o Eclesiastes.
Eu próprio reconheço que só muito raramente afirmo a Fé, que não me consome mas me alimenta, de forma tão clara como neste blogue. E faço-o porque este é um blogue pessoal e clandestino...É o tal problema da alma que não está ao ní­vel da fé que sente...
Contudo e pensando ainda melhor, tem-se uma percepção que a Fé das gentes vai ocupando cada vez mais espaço nos media. Ainda hoje me espantei no Público com o EPC (a efectuar uma curiosa deriva conservadora desde há uns dias), a verberar a incoerência das raparigas católicas que querem casar pela Igreja mas que não chegam virgens aos casamentos! O meu pároco diz o mesmo.
Eu só gostava de saber como o Malraux pôde antever com uma precisão destas com 30 ou 40 anos de antecedência...

quarta-feira, setembro 24, 2003

Não estamos sós... 

Quando iniciei o meu blogue, fi-lo com a percepção de que a Religião, seu tema dominante, era assunto que hoje em dia, na nossa sociedade ocidental, não interessa a quase ninguém. Contudo, ao frequentar mais assiduamente a blogosfera verifico surpreeendido que pelo menos aqui não é exactamente assim. Ele é o Cristão Praticante, ele é a Voz do Deserto, ele é o Cruzes Canhoto (excelente post sobre a Igreja primitiva), ele é o valete Frates, até o Aviz, o Dicionário do Diabo e outros mais profanos, falam com frequência e profundidade sobre estes assuntos. Bem dizia Malraux que " O século XXI será o século da Religião". Eis um assunto para reflectir em próximos posts.

segunda-feira, setembro 22, 2003

Já agora... 

Aqui para nós, já que ninguém certamente nos ouve, penso que dentro de pouco tempo irei ter a oportunidade de verificar se consigo viver a experiência do sofrimento, daquele mesmo a sério, da forma como intelectualmente a encaro. Tenho fé não em que Deus me evite essa experiência, mas em que me ajude a vivê-la com dignidade e grandeza de alma.

Sofrer, assim. 

Hoje alguém desabafava junto de mim: "Como é possível Deus existir se ele permite o sofrimento das suas criaturas?". Era alguém que sofria tanto que nada lhe fui capaz de dizer. Contudo, sei bem o que lhe devia ter dito. Devia ter-lhe dito que Deus é nosso Pai porque nos criou à  sua imagem e semelhança e como tal deu-nos liberdade plena para os nossos actos ou seja o poder de escolher o caminho como Ele o pode escolher. Acontece apenas que para essa liberdade ser plena, é necessário que o mundo à  nossa volta, o nosso corpo, os outros, tudo o resto evolua também em liberdade. O princí­pio da incerteza de Heisenberg tem um significado profundamente teológico. O contraponto disto é que, assim, o mal, o sofrimento, a morte, existem à nossa volta e dentro de nós. Só desta forma a nossa liberdade tem verdadeiro sentido, só assim a capacidade de escolher nos foi dada, só assim somos verdadeiramente filhos de Deus, só assim temos algo de divino em nós. Deus criou-nos como filhos para vivermos em liberdade e não numa redoma como mascotes. Aceitando isto podemos talvez perceber que o sofrimento não é um castigo nem a prova duma ausência, podemos talvez perceber que o sofrimento deve ser uma oportunidade de ter consciência da precaridade da nossa existência terrena, uma oportunidade de, tendo maior consciência da nossa condição humana, nos aproximarmos de Deus. Seguramente que esta consciência nos eleva e alivia o sofrimento.
Isto era o que devia ter dito mas não fui capaz. Tive medo de não ser entendido, de parecer minimizar o seu sofrimento. Tive medo até de, se calhar, estar enganado.
Em vez disso murmurei umas coisas chochas e e inconsequentes.
Tive também quase para dizer que, havendo tantos milhões de pessoas a sofrer, a morrer, todos os dias, quem somos nós, eu e ela, mais do que esses outros aos olhos de Deus. Também isto retive para não correr o risco de ser brutal.
Porque é tão difí­cil pôr a minha Fé ao serviço dos outros? Deve ser a sina dos que não tem uma alma ao ní­vel da sua Fé...

O rosto de Deus 

Hoje apercebi-me de que a description do meu blogue poderia dar a ideia que eu estou armado em Jeová. Não é de todo minha ideia praticar um pecado tão ominoso.
Na verdade apenas quis registar a primeira vez em que o meu Deus, o dos cristãos, dos judeus e dos muçulmanos, respondeu a um homem à pergunta "quem és tu?". Só 13 séculos mais tarde Deus voltou a mostrar-nos o Seu rosto, o qual ficou descrito, registado, impresso desde então. Para quem o quiser e puder discernir, claro.

domingo, setembro 21, 2003

Rezar, assim. 

Também se sabe rezar no Islão:
“Meu Deus,
Se te adorei por medo do inferno,
queima-me em seu fogo.
Se te adorei pela esperança do paraíso,
priva-me dele.
Mas se te adorei unicamente por Ti,
não me prives da contemplação do Teu rosto.”

(Râbi´a)

Rezar, assim. 

Falava eu há dias do pobre S.Tomás de Aquino e deparo-me hoje com isto, por ele escrito:
“Concede-me Senhor meu Deus,
uma inteligência que te conheça,
uma angústia que te procure,
uma sabedoria que te encontre,
uma vida que te agrade,
uma preserverança que te espere,
e uma confiança que te possua, enfim!”

Só pelo facto ele de nos ter deixado uma oração como esta, rezo para que Deus a tenha atendido.

sexta-feira, setembro 19, 2003

PARA OS QUE ME VISITAM PELA PRIMEIRA VEZ (inspirado em Abrupto) 

Nesta altura do dia, o Guia já foi visitado mais de 1 vez, um recorde absoluto desde que existe. Isto significa que houve gente que veio hoje aqui pela primeira vez. Seja(m) bem vindo(s).
Estamos num espaço religioso. Agradeço a todos que retirem os seus chapéus e que deixem o seu calçado de rua à entrada do blogue.

E agora, José? 

Pressinto com alívio que até hoje, as únicas visitas ao meu blogue são as minhas próprias. A ausência dum site meter e o meu próprio pudor permitem-me não divulgar quantas elas foram. A componente racional da minha pessoa rejubila com a manutenção do carácter totalmente privativo deste blogue.
Por outro lado ao acabar de ler o que escrevi aqui até hoje, surpreendo-me a pensar o mesmo que S.Tomás de Aquino disse ao interromper abruptamente a sua Summa Theologicae terminando assim todo o seu monumental trabalho teológico e filosófico: disse qualquer coisa como “Omni phoenum”, ou seja “tudo palha”! Pensa-se que tal atitude veio de S.Tomás ter achado que o seu enorme esforço de inteligência de toda uma vida, não o ter aproximado de Deus, talvez por lhe ter faltado a dimensão espiritual, a humildade humana.
Ora, reduzindo isto às minhas mui humildes proporções, também me apetece dizer o mesmo. Ou seja, vejo no que escrevi muita lógica, muita “erudição” ou melhor, pretensão à mesma, mas pouca espiritualidade, pouco calor; muita ânsia em explicar mas pouco sucesso em partilhar a paz interior e os sentimentos que me são dados pela Fé que em mim sinto.
Tentarei de futuro escrever um pouco mais sobre como a Fé entrou em mim, sobre as (enormes) dificuldades que tenho em viver de acordo com ela e até mesmo em falar aos outros sobre ela. Tentarei demonstrar que a Fé não é incompatível com a Razão, cujo uso contribuiu grandemente para eu atingir a Fé, mas tentarei também demonstrar que o essencial da Fé transcende a Razão: tem a ver com o Amor, com a caridade (que em português soa tão mal: pensemos antes em termos de kindness, lindíssima palavra inglesa).
Parafraseando S.João, tentarei que tudo aquilo que vier a escrever seja escrito para convencer quem me leia a acreditar que Cristo, Moisés, Buda, Maomé, Mani, Zoroastro e outros falaram em nome de Deus e também para que, acreditando nisso, consiga viver a sua vida em Seu Nome.

quinta-feira, setembro 18, 2003

Dar-al-Islam 

O que disse ontem sobre o Islão não é uma crítica: é uma constatação sobre a sua natureza essencial. Aliás se pensarmos na génese desta grande religião universal é fácil de perceber que tenha adquirido as suas características únicas.
Maomé tem a sua revelação na Arábia, num ambiente político e religioso desagregado, dividido em múltiplas tribos e crenças pagãs , entalado entre dois fortes impérios com fortes religiões de estado: o império romano do oriente cristão e o império persa sassânida zoroastriano. Para Maomé a adesão do povo árabe à nova Fé a ele revelada passava necessáriamente pela unificação política, para o que muito contribuiu a noção tão forte da necessidade de sujeição absoluta a Deus como carácter essencial da relação entre o Homem e Deus. Sendo assim, naturalmente, Maomé tornou-se num líder político e militar. Morreu pouco após ter conquistado Meca e criado uma identidade política una no Hedjaz e deixando o Alcorão como a Mensagem Divina Revelada que substituía não só os paganismos árabes pré-islâmicos como o judaísmo e cristianismo então muito difundidos na Arábia. Deixou um conjunto enorme de preceitos corânicos de foro pessoal, familiar, social, cultural, político, que os seus sucessores transformaram em lei, a “Sharia”.Deixou também uma mensagem muito clara de que a nova religião era universal e que o mundo todo era “dar-al-Islam”, terra do Islão, isto é, devia mais tarde ou mais cedo tranformar-se em terra sujeita à Lei de Deus.
É pois evidente que a indissociabilidade entre política e religião faz parte do código genético do Islão. Os espantosos sucessos militares e religiosos que fizeram, em duas ou três gerações após Maomé, estender a terra do Islão desde a península Ibérica à China foram para os muçulmanos a prova última de que Deus estava com eles e que a sua religião tão mais simples de que as demais era efectivamente a derradeira e definitva revelação divina. A partir daí estava tudo lançado. O extraordinário desenvolvimento da civilização islâmica, como que um terreno virgem que foi beber tudo à ciência grega pré-cristã, à cultura persa e também hindu, isto numa altura de brutal retrocesso civilizacional no mundo ocidental cristão (estamos dos secs. VIII e IX DC), foi a cereja no bolo: estava encontrada a verdade definitiva sobre Deus e essa verdade estava no Corão que respondia a todas as questões que se podiam então colocar ao ser humano.
Tenho para mim que a interpenetração total de todas as dimensões humanas numa fé religiosa com a eliminação de toda a dialética entre o secular e o religioso poderá ser uma das causas principais da cristalização não só da fé como da própria civilização islâmica.
Tal como acho que os sucessos iniciais do Islão não são a prova de que seja a revelação divina definitiva e derradeira, também acho que a situação actual do Islão não nos pode levar a rejeitar a sua genuinidade como revelação divina feita no quadro histórico, civilizacional, cultural em que aconteceu.

quarta-feira, setembro 17, 2003

Religião e Política 

Tem-se discutido por aí a relação Religião-Política e, tal como Aviz menciona, o tom e conteúdo da discussão são (mais uns) sinais da profunda, espessa e generalizada ignorância sobre a natureza do fenómeno religioso bem como sobre as Histórias das Religiões e da Humanidade. São, infelizmente, também sintoma da terrível superficialidade com que hoje se discutem todo o tipo de assuntos. O acesso cada vez mais fácil à comunicação (não só à recepção da mesma, mas agora com os fórums, com os blogues, também à própria emissão da dita), se por um lado expõe de forma mais gritante a tal ignorância, por outro também a estimula de certa forma. Fiquemos por aqui, pois não é disto que quero falar.
É evidente que Religião e Política não são nem nunca foram dissociáveis. As próprias naturezas intrínsecas de ambas a isso levaram e continuam a levar. Agora acontece que as relações entre ambas são múltiplas, complexas, biunívocas, por vezes subtis e imperceptíveis, outras vezes evidentes e mutuamente opressivas. É pois extremamente pobre reduzir a relação entre a Religião e Política a dicotomias como a da esquerda/direita, dicotomias essas tão recentes na História.
Por outro lado, dado que a ignorância sobre as religiões fora do perímetro judaico-cristão ocidental é ainda mais incomensurável, não há geralmente a percepção que a relação Religião-Política depende muitíssimo de que Religião e de que espaço civilizacional ou geopolítico estamos a falar.
A Religião Cristã tem na sua matriz original a separação do religioso e do secular. Frases de Jesus como “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” ou “O meu reino não é deste mundo” permaneceram ao longo da História como marco da essência da fé cristã, mesmo em tempos em que a Igreja o quis esquecer. A associação vulgarmente pressentida entre a fé cristã e as atitudes politicamente conservadoras tem muito menos a ver com a sua essência do que com mecanismos históricos de preservação do poder político e social em que as elites utilizaram a fé como instrumento de estabilização social, muitas vezes com a cumplicidade activa ou passiva da Igreja Católica, Protestante ou Ortodoxa.
Essa cumplicidade, tantas vezes incompreendida e criticada mesmo pelos próprios Cristãos, embora tenha tido certamente, em muitas ocasiões, motivos que nada tem a ver com a Fé, resulta fundamentalmente de algo que quase toda a gente se foi esquecendo e que é a própria natureza da Religião: a Fé, a Religião não tem a ver com este Mundo, tem a ver com o nosso caminho para Deus, com a nossa Salvação; já a Revolução, essa procura a salvação neste mundo, para todos os homens e se possível já para amanhã, o que é certamente generoso, louvável e apoiável. Todavia, a Religião trata de coisas inteiramente diferentes, dá ao Homem bens totalmente diversos daqueles que a chamada Esquerda entende serem devidos à partida a todos os Homens. Seguramente que a Igreja tem pensado de forma recorrente que se os Homens se focarem na Revolução, tenderão a esquecer a sua própria Redenção (é tão fácil esquecê-la...). É também evidente que as forças mais reaccionárias se tem querido apoiar neste código genético da Religião e que o tem utilizado por vezes de formas preversas e terríveis. Contudo, uma má utilização que se faz da Fé não retira a sua natureza essencial embora possa afastar e afasta inevitavelmente as pessoas de Deus.
Outro factor que tem contribuído fortemente para dicotomias erradas é algo que é essencial na Fé Cristã e que é cada vez mais difícil de entender para larguíssimas franjas da nossa sociedade: a atitude perante o sofrimento. Toda a gente hoje acha que o sofrimento humano pode e deve ser evitado. É opinião generalizada que a Fé Cristã acha, de forma conformista, que o sofrimento faz parte da vida e portanto deve ser tolerado. Como tal os cristãos, ou melhor a Igreja, é acusada de servir de travão contra o progresso humano pois não luta contra todas as formas de sofrimento.
Acontece porém, que a Fé Cristã, originada de alguém que aceitou dar a vida por nós, alguém que apesar de Filho de Deus aceitou sofrer para nos salvar, tem também como mensagem essencial a noção de que o sofrimento, sendo muitas vezes inevitável, pode ser redentor, pode ser criativo, pode tornar-nos melhores, pode aproximar-nos de Deus.
Claro que esta noção é escandalosa nos tempos que correm, particularmente para a Esquerda, generosa que é na sua natureza, mas o facto é que, se não crermos nisto, o sofrimento que nos pode acontecer a todos e de tantas maneiras, tornar-nos-á seguramente piores, mais miseráveis, mais sofredores.
Termino este post que já vai longo com uma reflexão. Se há um caso em que a relação Religião-Política nada tem a ver com isto que temos estado a falar é o Islão.
Para o muçulmano, Deus não é Pai como para os cristãos: Deus é o Senhor ao qual devemos ser totalmente submissos (é literalmente isso o que quer dizer muçulmano) e isto em todas as dimensões da vida: pessoal, familiar, social, económica, política. No Islão não há direita nem esquerda, quando muito há literalistas (que às vezes derivam em fundamentalistas) e reformistas. Toda a acção política deve ser feita em nome de Deus, toda a legitimação do poder vem de Deus. Pensar que o Estado pode ser independente da Fé é algo importado do Ocidente, que encontrou sempre e encontra hoje enormes resistências. Como talvez saberão, o árabe é a línguagem sagrada do islamismo e nela não há palavra que se aproxime sequer do conceito do secularismo.
Ao pensar nisto, recordo com alguma ironia certas discussões sobre religião que tem passado nestes blogues nos quais tanta certeza mascara tanta ignorância.

quinta-feira, setembro 11, 2003

A razão do ecumenismo (2ªparte) 

Há ainda um outro factor extremamente importante: o factor político.
Desde o aparecimento das sociedades organizadas, dos primeiros estados, há uma questão fundamental que se tem colocado e que é imprescindível para a estabilidade das organizações sociais: qual é a origem do poder num estado, qual a sua fonte de legitimação?
Actualmente, nas sociedades democráticas modernas esta questão não se coloca estando resolvida de um modo estritamente secular. Mas na Antiguidade não era assim. O poder tinha de ser forte para a sociedade ser estável mas por outro lado não conseguia ser naturalmente absoluto. Estando esse poder assente na força havia sempre limites: limites dentro desse próprio estado, limites impostos por estados vizinhos. Ou seja, se no estado o poder não era nem podia ser verdadeiramente absoluto apesar de, por natureza, o pretender ser, então a questão da sua fonte de legitimação, da sua origem, era crucial para poder ser aceite como tal pela sociedade assegurando assim a sua perenidade.
É aqui que a religião, ou melhor as religiões, tiveram e ainda continuam a ter um papel crucial. Papel crucial mas também biunívoco e, há que dizê-lo, também equívoco: se por um lado a religião, legitimando o poder o justifica podendo por isso condicioná-lo, o simples facto de isso ser possível também vai condicionar a religião na sua natureza intrínseca para não falar do facto do próprio Poder ter um interesse activo em influenciar e condicionar a religião e as suas superestruturas eclesiásticas. Daqui vem certamente o conceito de Religião de Estado, hoje tão em desuso no mundo Ocidental mas ainda muito presente noutras áreas do globo.
Esta tem sido uma longa história sobre a qual é interessante reflectir.
A íntima relação entre política e religião existia já naquilo que chamei de pré-história religiosa. A cabeça do estado, corporizada no rei, era como que um intermediário entre os homens e os deuses. No caso dos faraós, essa intermediação era justificada pela sua própria natureza divina. Era a cabeça do estado que tinha sido escolhida pelos deuses, que conhecia os seus desígnios, que partilhava a sua natureza e que intercedia pelos homens. Na Suméria, berço da nossa civilização, os reis das cidades-estados eram sempre filhos de deuses ou deusas. Temos pois que a legitimação religiosa do poder no estado era algo linear e eficaz: a extraordinária duração da civilização egípcia assentou em elevado grau neste processo sistemático de legitimação do poder real.
Com as novas religiões de cunho ético, o Judaísmo, o Zoroastrismo, o Hinduísmo, o Budismo, o Cristianismo, o Islamismo, a questão da relação entre a religião e a política ganhou uma complexidade muito maior mas nem por isso perdeu importância.
Como vimos, estas novas religiões trouxeram a noção que cada homem, criado à imagem e semelhança de Deus, tem dentro de si uma natureza divina, a alma. Ou seja somos todos filhos de Deus e portanto irmãos entre nós. Não há pois entre nós indivíduos especiais que intermedeiam a relação dos homens com Deus e que por esse facto tem autoridade secular sobre eles. A relação passou a ser entre cada homem e Deus. A questão é se o Homem alguma vez esteve preparado para assumir inteiramente esta relação directa: eu diria que, normalmente, não está nem nunca esteve.
Por outro lado, Deus, para irmos ao Seu encontro, para atigirmos o Seu conhecimento pleno, isto é, sermos salvos, revelou-nos um padrão de comportamento, uma dimensão ética para a existência do homem. Essa dimensão ética foi recebida por aqueles que viveram as Revelações, foi posta a escrito por gerações de discípulos e seguidores, foi ganhando uma parcela cada vez maior no conteúdo, na doutrina de cada Fé, foi também alvo de acrescentos, interpretações, adaptações e como é óbvio foi penetrando crescentemente na ética humana e social das sociedades até a dominar quase totalmente.
Ou seja, se os princípios éticos revelados por Deus se foram constituindo como a ética social vigente então, inevitavelmente, o poder do estado foi-se adaptando e se associando à Fé por forma a utilizar essa ética como instrumento de estabilidade social com vista à sua própria preservação. Mais ainda, assumindo-se o estado como defensor da ética revelada por Deus, passou então a assumir um papel de defensor da Fé, um papel de verdadeiro agente escolhido por Deus ao serviço do Seu projecto de salvação humana. Estava então encontrado o novo processo de legitimação do poder do estado.
Neste contexto, criaram-se sempre ligações profundas entre os estados e as estruturas eclesiais que suportam as religiões, dada a enorme convergência de interesses entre ambos: o estado procura legitimação e estabilidade social, a igreja procura fazer chegar a mensagem revelada a toda a sociedade e que esta aceite essa mensagem e viva em seu nome.
Um caso paradigmático é a relação entre o império romano e a emergente igreja cristã. (continua...)

A razão do ecumenismo (1ª parte, 2ªvia) 

Desde sempre o Homem intuiu a existência de Deus, dum Ser superior. No início, essa intuição resultou da necessidade de explicar a sua própria existência e a existência de todas as coisas. Resultou também da necessidade do Homem enfrentar a sua total fragilidade perante o Mundo e as contingências do destino. A Religião e a Fé começaram por ser resultado de uma necessidade ontológica e também da necessidade do Homem pensar que de alguma forma poderia controlar o seu destino, interpretando, influenciando e aplacando os desígnios, muitas vezes terríveis, desses Deuses que reinavam sobre o Mundo.
A Religião começou pois por ser uma explicação cosmológica e também um meio para o Homem, através dos ritos, dos sacrifícios e das invocações tentar controlar um pouco melhor aquilo que influenciava a sua sobrevivência: as colheitas, as guerras, as secas, a Vida e a Morte.
Chamemos a este período inicial de pré-história religiosa porque a partir de certa altura (ou de certas alturas consoante a zona do globo) a natureza do fenómeno religioso conheceu uma alteração profunda.
Com efeito, mais tarde, o Homem descobriu dentro de si algo que o transcendia, algo que sentia ligá-lo aos Deuses ou a um Deus. O Homem descobriu que havia um Deus, ou Deuses ou algo definível como um Eu Universal (Brahman, na religião Hindu), que tinha um projecto para o Homem, enquanto elemento da Sua Criação.
Deus foi revelando ao Homem, em vários momentos da História, duas coisas essenciais:
A primeira é que enquanto criaturas d´Ele, temos na nossa natureza algo d´Ele, algo que Lhe é consubstancial, algo que a nossa cultura Judaico-Cristã, tal como a Islâmica, chama Alma, mas que existe com outros nomes no Budismo, Hinduísmo, em todas as grandes Religiões.
A outra revelação é que, por forma a que a nossa alma, a nossa natureza divina, vá ao encontro de Deus, ao encontro do Seu conhecimento pleno, é necessário que o Homem consiga dominar e suplantar a sua componente material. Para isso, Deus revelou-nos em muitos momentos e lugares, em inúmeros ambientes culturais completamente diversos e, portanto, através de muitas linguagens, uma dimensão Ética para a nossa existência. Essa dimensão Ética existe, de forma naturalmente diferente em todas as religiões mas em todas elas é apontada como sendo o caminho do Homem até Deus, caminho esse universalmente considerado como o caminho da Salvação, da Perfeição, do Nirvana, ou daquilo que lhe quiserem chamar.
A noção hebraica da Aliança entre Deus e o Homem, esse monoteísmo ético tão inovador no tempo e no mundo em que surgiu, é no fim de contas comum a todas as grandes religiões, anteriores ou posteriores, mesmo que não sejam monoteístas. Aliás, se excluirmos as religiões animistas e as religiões a que se convencionou chamar pagãs, temos que a fronteira entre os monoteísmos e politeísmos das grandes religiões é ténue e, sem dúvida, muito mais formal do que substancial. É sobretudo uma questão de ênfase no Deus essencial ou de ênfase nas suas diferentes manifestações ou avatares.
Temos pois que ambas as revelações, a descoberta da Alma enquanto natureza divina no Homem e a descoberta da Aliança entre Deus e o Homem estão pois intimamente ligadas, mesmo que nem sempre tenha havido consciência disso. No fundo o que o Homem descobriu no Sinai, na Mesopotâmia, na Pérsia, na Índia, na China, na Palestina, na Arábia, é que havia dentro do seu Eu algo que não era seu mas sim de Deus, algo que o aproximava, o identificava com Deus. Isto mudou tudo. A noção da Alma, do Attman, do Dharma, criou a noção do Deus Pai e criou a noção de que a Salvação é o encontro com Deus.
A aparente diversidade, que às vezes parece antagónica, entre as Grandes Religiões, tem simplesmente a ver com o facto de Deus, ao revelar-se aos Homens, ter tido de o fazer do modo apropriado à realidade cultural e civilizacional existente em cada Lugar e em cada Momento em que Se revelou. Eu direi mesmo que esse modo de Se revelar teve não só em conta a realidade contemporânea do momento de cada revelação em particular mas também com a realidade futura (potencial ou pré-determinada) desse meio e doutros meios a serem posteriormente influenciados pelo meio original.
Para mim, que sou Católico, a consequência lógica e imediata desta reflexão é que se eu tenho verdadeiramente Fé em Deus, no quadro da minha Religião, se acredito realmente que Deus é Criador e nosso Pai e se revelou para possibilitar a nossa salvação, então não posso deixar de considerar as outras Religiões como verdadeiras manifestações de Fé e como consequências de verdadeiras revelações. As diferenças rituais, doutrinais, culturais, resultam disso mesmo, de diferenças culturais à altura da génese de cada Religião e durante todo o período subsequente a essa génese. A análise profunda da essência de cada uma das Grandes Religiões revela certamente muito mais semelhanças do que diferenças.
Mais do que isto: a ideia de que a verdadeira revelação e correspondente possibilidade de salvação só foi posta à disposição de uma parte da humanidade é totalmente inaceitável. Se eu considero que o Hinduísmo tem uma natureza absurda, incoerente e que foi apenas o instrumento da preservação de uma estabilidade social tutelada pela casta bramânica, como não dizer algo igualmente demolidor sobre o Cristianismo?
A negação da Verdade das outras religiões prejudica objectivamente a afirmação da Verdade da nossa. A mútua exclusão e anatemização entre Religiões é fonte, talvez a maior, do ateísmo! A assunção profunda da Verdade da nossa religião obriga-nos a aceitar e respeitar a Verdade das outras religiões. O Ecumenismo não deve pois ser um esforço de tolerância: é um imperativo racional e teológico!
Simples não é? Infelizmente não é nem tem sido nada simples. A História da Humanidade é a prova de que este conceito profundo mas simples não foi por ela apreendido.
A questão perturbadora que se coloca é a seguinte: no limite, se os Homens não conseguem aceitar a verdade das religiões dos outros será então que isso poderá ser um sinal de que nenhuma delas é verdadeira, uma vez que não é concebível que apenas uma o seja?
Para entendermos isto temos que reflectir profundamente sobre a natureza do fenómeno religioso no íntimo de cada Homem mas sobretudo no seio da sociedade humana.
Para os que, como eu, tem Fé, a importância extraordinária que as Religiões tem tido na História da Humanidade, nos seus grandes saltos civilizacionais, nas grandes rupturas ou descontinuidades históricas, tem como razão primeira o simples facto de em determinadas alturas, em diferentes lugares, de diferentes maneiras, Deus ter-Se revelado ao Homem e revelado a ele a sua própria natureza divina.
A questão está precisamente aqui - em vários momentos da História o Homem recebeu a Revelação: o que é que tem feito com ela?
Para aqueles a quem, directa ou indirectamente, chegou a Revelação, a importância desse facto foi e é enorme e deixará sempre uma influência inapagável. A consequência dessa importância no modo do Homem ver a Vida bem como a dimensão ética associada à Revelação foi que a Religião passou a ter um extraordinário papel estruturante a nível social, cultural e político.
Com efeito, em determinada altura a necessidade inata do Homem para se organizar em sociedade passou a ter um catalizador formidável: a Ética da mensagem revelada. Essa Ética, revelada e interpretada, passada a escrito em Livros Sagrados, passou a reger o Homem não só na sua relação com Deus mas também na sua relação com os outros. O Homem assumiu que Deus tem um desígnio para ele e que é no seu comportamento em sociedade e face à sociedade, que o Homem pode demonstrar a Deus e aos outros homens a sua aceitação desse Seu desígnio.
Isto é comum a todas as grandes religiões mas em graus bastante diferentes. Curiosamente as religiões que enfatizam mais a relação do Eu individual com o Eu universal, como o Budismo, são mais tolerantes para as outras religiões do que aquelas que põe mais ênfase no modo como Deus quer que nos relacionemos entre nós.
Voltemos à questão essencial.
Imaginemos uma determinada sociedade passada na qual, em dada altura, ocorreu uma Revelação Divina. Imaginemos que, como tem sido padrão, essa revelação traz uma componente ética entendida como instrumento de salvação. Imaginemos que essa revelação encontra suficiente eco nessa sociedade para que o núcleo embrionário de pessoas que aderiram em primeira instância à referida mensagem divina consigam propagá-la. Inevitavelmente, esse grupo de indivíduos, desejando ardentemente dar testemunho e desejando que esse testemunho frutifique, irão organizar-se gerando assim uma comunidade actuante. A forma como essa comunidade irá evoluir e organizar-se vai depender muito do entendimento ou interpretação que ela fizer da mensagem revelada. Dependerá muito do meio cultural e moral envolvente. Dependerá muito da resistência que encontrar nessa sociedade, a qual será sem dúvida determinada pelo grau de contraste entre a essência dessa mensagem e os padrões éticos, teológicos e culturais então prevalecentes. Dependerá muito da evolução que essa sociedade vier a ter e do papel mais ou menos estruturante que essa sociedade vier a atribuir a essa comunidade e à mensagem por ela anunciada.
Nuns casos, no seio da comunidade inicial de crentes irá formar-se um clero organizado e hierarquizado, como a Igreja Católica, noutros um clero não centralizado como no Islão, noutros casos uma simples comunidade de monges como a Sangha Budista. Mais tarde aprofundaremos as causas destas diferentes evoluções, sempre muito ligadas à relação que se estabelece com a própria mensagem revelada.
Voltemos de novo ao assunto. Imaginemos que a referida comunidade de crentes consegue captar a maioria da sociedade em seu redor para a sua mensagem de salvação. O que vai naturalmente acontecer é que, dada a ânsia pela salvação do ser humano, essa sociedade vai mudar os seus padrões éticos, os seus padrões rituais, os seus padrões comportamentais. A própria organização social vai-se rearranjar por forma a se compatibilizar com a mensagem revelada e agora aceite de forma generalizada.
Vai também acontecer que o clero entretanto formado vai criando um ritual cada vez mais definido e complexo para que os fiéis possam manifestar de forma visível e correcta a sua fé, a sua aceitação da mensagem revelada, para assim alcançarem a sua salvação individual. Vai também acontecer que, no seio desse clero ou fora dele, vão surgir teólogos que vão interpretar, aprofundar, às vezes adulterar a mensagem inicial. Vai também acontecer que fiéis iluminados por essa fé (às vezes chamados de santos) vão ter revelações, visões, intuições, complementares à revelação inicial.
Ou seja, sobre a mensagem inicial revelada vão-se acumular camadas de rituais, interpretações, novas revelações, complexas teorias teológicas, que se acrescentam a ela, criando por um lado um carácter mais distintivo dessa religião mas, por outro lado, obscurecendo o essencial da mensagem inicialmente revelada, afastando progressivamente esse carácter essencial da compreensão dos fiéis.
Por outro lado, todo este esforço de inteligência e de fé, de ritualização e de teologia, também contribui para uma maior dinâmica dessa religião e como tal para uma sua maior perenidade. Provavelmente aconteceria que sem toda a parafernália clerical, ritualista e teológica, a dita mensagem revelada se fosse perdendo por simples difusão, por capilaridade.
Aliás, o grande fundamento das organizações religiosas é precisamente a preservação da sua Verdade Revelada. O problema tem sido sempre que essa preservação tem sido sempre feita à custa dum certo eclipse daquilo que é verdadeiramente essencial na mensagem divina.
Tenho pois para mim que a essência das revelações divinas que estão na génese das grandes religiões é muito semelhante. O que diferencia as religiões é a forma como a sociedades humanas absorvem e interiorizam essas verdades reveladas, como se organizam em torno delas, como criam uma relação biunívoca com elas. Isto é, sendo verdade que a revelação divina altera profundamente a sociedade em que ocorre também é verdade que esta sociedade, ao longo da sua evolução, também afecta e condiciona a forma como essa revelação é entendida e aplicada.
Um outro aspecto a referir é que em cada revelação histórica, Deus como Pai que é, pretende sobretudo a nossa Salvação, ou seja que a nossa natureza divina O conheça e vá ao Seu encontro. Sendo assim, o que as Religiões oferecem ao Homem é a sua Salvação. Uma vez que, como vimos essas religiões se foram diferenciando uma das outras afastando-se daquilo que era verdadeiramente essencial na mensagem divina, cada uma dessas religiões se tem assumido perante os homens como o único caminho, a única porta para a sua salvação. Podemos dizer que cada Religião, cada Igreja pretende ser uma espécie de arca de Noé fora da qual não há salvação.
Tudo isto são factores que explicam que as grandes religiões são normalmente divergentes e antagónicas apesar do que tem em comum naquilo que é verdadeiramente essencial.

SHIIUU! 

Eis-me chegado ao estranho mundo dos blogues. Este texto que acima começo a desbobinar é o 1º duma série que venho escrevendo há muito tempo sobre a minha Fé, a minha Religião e outros assuntos que hoje não interessam a quase ninguém. Nunca os mostrei nem falei deles a ninguém. Nunca os mandei para nenhum jornal, nem sequer o da paróquia. Só muito raramente converso sobre as reflexões que neles faço. Agora de repente deu-me vontade de os expôr, não sei sequer a quem. Se calhar com a esperança de ninguém os ler. Às vezes fazem-se gestos pela única e simples razão da sua inutilidade ou inconsequência.
O orgulho é a fonte de todos os pecados. Tenho de ver bem se não será uma espécie de orgulho, certamente bem pueril, a razão de estar a fazer aquilo que estou a fazer.

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