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segunda-feira, maio 31, 2004

Monday sunny monday 




A coisa não pára: o Marco e o Lutz reincidem em grande estilo e surge um novo special guest star, o menino de sua avó, o pato_lógico Vítor Vicente. Que seja bem vindo.

sexta-feira, maio 28, 2004

Variações sobre Daniel Faria 

No fim de uma semana para esquecer deu-me uma coisa rara. Poesia.

Homens que vão ficar mal situados
Homens que vão ficar com as vidas paradas
Que vão ficar fora dos mapas
Que vão ficar sem horários
Como que com os pés fora do chão
Com crianças quase órfãs
Homens agitados sem sítio onde pousar

Homens que irão ter fronteiras em suas vidas
Que irão por caminhos esburacados
Homens que querem passar por atalhos inventados
Homens separados de outros destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que sobram após a negação das estratégias
Que andarão escondidos como maus artistas
Homens encarcerados fechando-se nas cascas

Homens que terão danos inconfessados
Homens que são sobreviventes viúvos
Homens que foram tirados
Do lugar

Homens que tinham projectos de casas
Com varandas, viradas para o rio
Homens nas esplanadas virados para a velhice
Muito danificados pelas intempéries
Homens cheios de energia ligados à terra
Parados à espera
De um recomeço possível para o eu interior

Homens revoltados por modo de ser
Um olhar fixo sem ver nada caminhando ao encontro
De si mesmo
Homens tão preparados tão prevenidos
Para o que der e vier

Homens ao vento com as mãos nos olhos
Sonhando regressos
Homens fazendo lume
Para fumar limpar o rosto e fechar os olhos
Tão impreparados afinal tão desprevenidos
Tão confusos à espera de um oásis qualquer
Onde lhes seja possível uma sombra ter

Homens que trabalharam sob a lâmpada
Do fim mas acreditaram
Que escavam nessa luz para ver quem ilumina
O meio dos seus dias

Homens há muito dobrados pelo pensamento
Que viveram devagar e quiseram correr
As persianas
Para ver no escuro como era o presente

Homens que tapam dia após dia o sofrimento
Que percorrem na sombra uma demanda cerebral
Que chutam a pedra da loucura fechando as pupilas
Homens pálidos que abrem caminho
À procura dessa pedra temida

Homens de cabeça aberta condenada ao pensamento
Livre. Que vêm lentamente procurar
Um lugar onde amanheça.
Homens que se sentam para ver uma manhã
Que esperam o seu lugar
Para a saída.

(adaptado de 'Homens que são como lugares mal situados', Daniel Faria in Poesia, 2003)

Ver poema original aqui.
Até segunda.

quarta-feira, maio 26, 2004

O judaísmo, novamente 

Já aqui falei da admiração que tenho pelo povo judeu, pelo seu património ético e pela importância que o judaísmo, enquanto religião, tem no corpo da minha fé cristã. Acho simplesmente impossível ser-se cristão em consciência descartando a tradição religiosa judaica, não apenas como contexto onde o surgiu o cristianismo mas sobretudo como fazendo parte duma matriz comum alargada e profunda.
Também já aqui falei da minha preocupação pelos caminhos que o judaísmo anda a tomar ultimamente. Em conversas com o Nuno Guerreiro, umas via posts, outras via mail tenho reflectido sobre as novas formas de anti-semitismo e sobre as suas origens. Numa conversa à exactamente dois meses, perguntei-lhe se a origem desse novo anti-semitismo não deveria ser procurada, pelo menos em boa parte, na forma actual como Israel está a ser governado.
Foi por isso que li com muito interesse este artigo no Público de Domingo passado. Falava da reunião em Budapeste das comunidades judaicas europeias sobre os novos anti-semitismos. Vou apenas citar uns trechos mas aconselho a leitura integral do artigo:
(...)Uma Europa sem judeus seria uma Europa mutilada. Não tanto pela culpa de séculos de anti-semitismo e do "paroxismo do mal" no Holocausto. Mas porque eles pertencem à Europa e porque as suas elites, as mais europeias de todas e desde sempre, deram à cultura ocidental um contributo revolucionário.(...)
Declina o velho anti-semitismo, cristão e de direita, e emerge um outro, sob novas roupagens: através de jovens muçulmanos, eles são também objecto de racismo; através de sectores de extrema-esquerda "anti-globalização", que conjugam um virulento anti-americanismo com uma não menos violenta "judeofobia"; e ainda entre grupos cristãos terceiro-mundistas(...)
Para o jornalista e escritor alemão Josef Joffe, "o anti-semitismo clássico europeu desapareceu. (...) e está em plena expansão o anti-semitismo conceptual. Ele consiste em acusar Israel e os judeus que o apoiam de encarnar o imperialismo, o colonialismo, a vontade de dominação e de perversão da humanidade". (...)
Ao mesmo tempo, sublinha Wieviorka, ocorre outro fenómeno: "Nos últimos 30 anos, no seio da diáspora, designadamente em França e nos Estados Unidos, os judeus acentuaram a sua etnização. Visíveis no espaço público, exibem claramente o seu apoio não só ao Estado de Israel, mas também à sua política actual." O que reforça a amálgama. "De solução, Israel tornou-se problema para os judeus da diáspora".
"Abriu-se uma dialéctica infernal", escreve o filósofo Edgar Morin. "O anti-israelismo aumenta a solidariedade entre os judeus da diáspora e Israel. O próprio Israel quer mostrar aos judeus da diáspora que o velho antijudaísmo europeu é de novo virulento e que a única pátria dos judeus é Israel, exacerbando o temor dos judeus e a sua identificação com Israel." E o anátema de anti-semitismo serve para ocultar a repressão e proteger Israel de qualquer crítica.(...)
(...)o jornalista Daniel Ben-Simon interrogava-se no "Ha'aretz" sobre o "não-dito" de todo o encontro: "Haverá alguma verdade na acusação que se espalha nos círculos académicos, intelectuais e políticos de que a pessoa que, de facto, ateia o fogo do novo anti-semitismo é exactamente o primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon?"


Muitas vezes a origem dos nossos problemas está em nós próprios. Muitas vezes também está nos outros. Normalmente a origem dos problemas está nos dois lados. Para resolver problemas e prevenir catástrofes há sempre que saber discernir sabiamente, desapaixonadamente, de onde eles vem e de onde elas podem chegar.
Haja pois sabedoria e que ela suplante o fanatismo. A bem do judaísmo e de toda a Humanidade.


Porque hoje é 4ªfeira, vamos à terra. 



terça-feira, maio 25, 2004

Ascensão e compreensão 

Tinha já preparado um textozito sobre a Ascenção de Cristo, celebrada na liturgia de Domingo passado. Contudo e felizmente, passei os olhos por um texto do Frei Bento Domingues. Ele diz aquilo que eu queria dizer mas di-lo muitíssimo melhor do que eu. Por isso vou transcrevê-lo:

(...)na liturgia católica, celebra-se a "Ascensão de Cristo ao Céu". O Ressuscitado flutua e desaparece encoberto por uma nuvem. Os discípulos fixam-se num céu que os perde (Act 1,1-11). Na era espacial, esta festa pode prestar-se a incontroláveis derivas da imaginação e a equívocos que a podem tornar ridícula. Importa, por isso, pensar na significação cristã dessa extraordinária figuração simbólica para os dias de hoje.
É por ela que começam os Actos dos Apóstolos, a grande narrativa das origens do cristianismo. É introduzida por uma pergunta dos discípulos que deixou o próprio Cristo de boca aberta: "Senhor, é agora que vais restaurar o reino de Israel?" O Mestre verifica que eles não aprenderam nada. A esperança que tinha renascido com a sua ressurreição não passava afinal de um retorno aos velhos sonhos de um Estado teocrático que ele tanto combatera ao longo dos anos. Diante dessa pergunta, Cristo concluiu que não adiantava insistir. O conhecimento que entra pelos ouvidos, os sinais que entram pelos olhos precisam de um receptor que seja apto a captar a sua significação espiritual. Sem ele, como dizia Tomás de Aquino, o próprio Evangelho torna-se "letra que mata".
Jesus sabia, aliás, o que tinha acontecido com ele próprio: só o Espírito de Deus conseguiu mudar radicalmente o rumo da vida que levara em companhia de João Baptista. Sem a obediência ao impulso e à graça do Espírito Santo, os discípulos de Cristo e os dirigentes das comunidades cristãs nunca conseguirão vencer duas tentações persistentes: os sonhos do poder e a "espiritualidade" alienante.
A este respeito, a narrativa da Ascensão é espantosa: os discípulos, já depois de Cristo ter desaparecido, continuam a olhar para o Céu esperando de lá as soluções para a terra. São figuras celestes - "os dois homens vestidos de branco" - que os interpelam de forma cruel: "Homens da Galileia, porque estais a olhar para o Céu?"
Não tem sentido perder-se em conjecturas acerca do desígnio insondável de Deus sobre o futuro do mundo: deixai a Deus o que só a Deus pertence. Esta hora é de convocação geral da Igreja para o testemunho: "Recebereis a força do Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia, na Samaria, e em toda a Terra."


Muito bem dito.

Palavra profética 

O bom do Tiago Cavaco, que desde há 3 semanas vela com uma paciência evangélica o sono pouco católico de Maria, descobriu ontem o sentido profundo da "noite, o que é?" do Francisco José Viegas. Vou agora fazer uma profecia: dentro de um ano o Tiago estará a fazer early morning blogs ao fim de semana.

segunda-feira, maio 24, 2004

Eis senão quando... 




Agora também às segundas. Para aumentar a biodiversidade da Terra.


quinta-feira, maio 20, 2004

Um conto de Rumi 

Certo dia, Moisés ouviu um pastor que rezava de forma espontânea: “Ó Deus, mostra-me onde estás, para que eu possa tornar-me Teu servo, para que eu amarre Tuas sandálias e penteie Teus cabelos, para que eu lave Tua roupa, mate Teus piolhos, traga Teu leite, ó meu adorado! Que eu beije Tua mão amada, que eu massaje o Teu pé amado e que no momento de dormir , balance tua cama. Ó Tu, a quem todas as minhas cabras são oferecidas em sacrifício; Ó Tu em quem eu penso, lânguido e pleno de amor”. Ao ouvir a oração do pastor, Moisés, o profeta legalista, repreende-o severamente, chamando-o preverso e ímpio, por referir-se a Deus Juiz e Senhor, de forma assim tão familiar e estúpida. Para Moisés, Deus não necessitava de semelhante serviço. Diante de tal atitude, o pastor, envergonhado e transtornado, com a alma queimada, rasga suas roupas e retira-se para o deserto. Neste momento veio do céu uma revelação de Deus a Moisés que lhe dizia assim: “Separaste meu servidor de Mim. Eis que vieste para reconciliar meu povo comigo e não para afastá-lo de Mim. De todas as coisas, a mais detestável a Meus olhos é o divórcio. Dei a cada povo uma forma de expressão. (...) Não tenho necessidade de seus louvores pois estou acima de toda a necessidade. (...) Não considero as palavras que são ditas mas o coração que as oferece, pois o coração é essência e a palavra acidente. (...) Ó Moisés, aqueles que amam os belos ritos são de uma classe, aqueles cujos corações e almas ardem de amor são de outra. (...) Não é preciso virar-se para a Caaba quando se está nela. (...) A religião do amor é diferente de todas as outras religiões pois para os amantes, Deus é a Fé e a religião”. Em seguida, Deus infundiu no íntimo do coração de Moisés os mistérios que nenhuma palavra humana alcança. As palavras de Deus invadiram seu coração, transformando radicalmente sua visão. Após compreender a reprovação de Deus, Moisés corre ao deserto em busca do pastor. Ao encontrar-se com ele, diz-lhe, movido de compaixão: "Não busques regra alguma nem método de adoração; diz tudo o que o teu coração aflito deseja. Tua blasfémia é a verdadeira religião e a tua religião é a luz do espírito. Estás salvo e, graças a ti um mundo inteiro salvou-se igualmente".

(Masnavi, II Livro, 1720-1785)

Compreender o Islão - o Sufismo 

No 2º post de todo este blogue, escrevi uma coisa que faz parte do essencial da minha atitude religiosa: "A negação da Verdade das outras religiões prejudica objectivamente a afirmação da Verdade da nossa. A mútua exclusão e anatemização entre Religiões é fonte, talvez a maior, do ateísmo! A assunção profunda da Verdade da nossa religião obriga-nos a aceitar e respeitar a Verdade das outras religiões. O Ecumenismo não deve pois ser um esforço de tolerância: é um imperativo racional e teológico!".
É sobretudo por isso que tenho vindo observar com enorme preocupação a estranha, irreligiosa e niilista deriva do Islão pelos caminhos do fundamentalismo wahabita e salafita, iniciada há cerca de 2 séculos mas com uma súbita aceleração nos últimos anos. Foi para tentar compreender um pouco melhor este fenómeno que desde há 2 ou 3 anos para cá tenho lido um bocado sobre o Islão que hoje nos parece tão estranho e terrível.
Dessas leituras, muitas vezes difíceis, resulta uma impressão ainda geral e imprecisa de que tem vindo a ocorrer uma profunda distorção da Mensagem original do Islão, ainda que esta apresente para mim, como penso que será natural, muitas zonas obscuras. Contudo, do meio daquilo tudo, surgiu-me um elemento do Islão, que remonta às suas origens, que esteve sempre profundamente ligado à tradição islâmica e que me aparece como um corpo de Fé que tranquiliza no sentido que tem numerosos pontos em comum com a religião Cristã e com outras religiões no que respeita ao seu ethos fundamental: o amor de Deus e a Deus, o próximo como corpo de Deus, a paz em nós e com o outro como dádiva de Deus. Estou a falar do Sufismo, a componente mística do Islão. Qualquer diálogo inter-religioso com o Islão não pode ignorá-lo pois é nele que se podem encontrar os melhores pontos de contacto: a proclamação da evidência de Deus, a procura da Unidade de Deus e a religião do amor.
Dentro dos místicos e teólogos sufis sobressai a figura luminosa do persa do sec.XII Rumi(Jalal al-Din Muhammad Rumi).
Dele li recentemente uma espécie de conto que vou trancrever em post seguinte. O que lá se conta não pode ser mais belo nem mais universal nem mais actual.
À luz deste conto muitas reflexões podem ser feitas por cristãos, católicos e não católicos. Sobre Fátima, por exemplo. Mas vamos lá então ler o conto.



quarta-feira, maio 19, 2004

Selecção Reader´s Digest 

Hoje saiu mais um número da Terra da Alegria, publicação já obrigatória, pelo menos para os que nela escrevem.
Hoje o Miguel pergunta pelo riso dos crentes: “Rir é bom. Rir de nós, melhor remédio é. O pior é que preferimos responder ao eventual achincalhamento com presunções sérias e dogmas de virtude pública.
O Rui, num texto iluminado, fala-nos do sentido primordial da “salvação” que todos os crentes procuram: “parece-me que a salvação será, sobretudo, a capacidade que se tem para a felicidade a partir daquilo que se tem e que se é, pouco ou muito, no momento presente, olhando para o mundo e procurando entendê-lo”.
O Fernando, a propósito de Fátima, questiona o respondermos sempre às perguntas que nos fazem: “O cristão tem de responder, mesmo se a pergunta é ofensiva, porque na definição de cristão está implicado o suportar das ofensas; contudo, em lado nenhum é incentivado a contribuir para o crescimento e multiplicação da ofensa no mundo...”
O Tim, continua às voltas com o X (de Cristo e de Marx) e diz uma coisa nova, pelo menos para mim: “Marx preconizou como necessário para se chegar a uma sociedade sem classes, uma etapa de legitimação do domínio dos mais fortes (os mais capazes) sobre os fracos (aqueles que tendo necessidades, não têm capacidades para as satisfazer) para que se chegue (de modo algo paradoxal) a uma sociedade sem classes”.
O Carlos continua a sua demanda pelo paraíso terreal: “O olhar cristão tem partido de uma perspectiva antropocêntrica de domínio sobre a natureza, segundo a interpretação tradicional do mito bíblico das origens... Hoje, porém, a reflexão cristã e teológica, a partir dos mesmos e de outros textos bíblicos, aproxima-se de uma «integração da história humana nos ciclos do ecossistema. Só isso pode garantir a sobrevivência» (Jürgen Molmann)”.
E eu, vítima da minha verbosidade, continuo às voltas com a cadeira do bispo, numa altura em que parece que ela se vai manter na tribuna. Ou será impressão minha?

terça-feira, maio 18, 2004

Concordância  

Desta vez eu e o David concordamos absolutamente: o problema maior da Concordata acaba por ser dos próprios católicos.
Mas já agora , David, faz-nos a caridade de acreditares que nós acreditamos também Nisso em que tu acreditas...


segunda-feira, maio 17, 2004

A pedido de muitas famílias 

O CC, amigo e companheiro da Terra da Alegria, volta a ter blogue próprio. Chama-se partículas elementares e pelo blog description só podia ele: "um blog ácido. para doce já basta a vida". Vai já aí para o lado, onde estava a Quinta Coluna.
A notícia é fresca e deve a sua frescura ao Technorati: fui o visitante nº2. Muitos mais haverão.

sexta-feira, maio 14, 2004

Mais Rumos 

Para acabar uma semana em que a blogosfera me ajudou a manter-me inteiro aí vão mais uns lugares recomendáveis.
Há que tempos andava para linkar uma coisa excelente e única por estas bandas: a deusa do blog. Quando finalmente ia fazê-lo os Bengelsdorff informaram-me que a Deusa tinha terminado a sua carreira celeste e tinha descido à terra a querer roubar carteiras. Muita atenção pois. E quero agradeçer ao Paulo Ribeiro o desenho da Unidade no Sangue.
Orígenes, o famoso teólogo e asceta cristão que quis ser mártir sem o conseguir, reaparece entre nós para nos falar do Jardim das Delícias. Muito interessante, mais uma perspectiva católica.
E finalmente um blogue para interessados (como eu) no orientalismo: 1001 0rientes. Excelente.

Fátima, novamente 

OK, David, meu amigo e irmão na Fá, eu acredito que não olhes com dureza os peregrinos de Fátima mas sim com compaixão. Perdoa-me pois a expressão que usei. E meu caro Lutz também entendo a tua pergunta sobre se "não haverá nada melhor para essa senhora do que Fátima".
Para mim e para vocês há carradas de coisas melhores do que Fátima. Mas para a tal senhora e para muitos como ela, Fátima é o melhor que a vida, a igreja e a fé lhe tem para oferecer: é luz, é esperança, é olvido, é consolo (ou usando uma expressão antiga: consolamentum). Como o meu amigo Timshel costuma dizer: a cada um segundo as suas necessidades. E aquilo que aquela senhora de S.Pedro do Sul (que eu não conheço mas que existe com toda a certeza) necessita mesmo está em Fátima. E fico feliz por ali o poder encontrar. Deus preocupa-se seguramente mais com as suas dores do que com os nossos edifícios teológicos e, por isso, é ela que Lhe interessa. E para ela, a tal boa senhora de S.Pedro do Sul, Fátima faz parte da sua melhor opção. Tão simplesmente porque essa é a opção que lhe é possível, a opção que lhe resta.
E não me digam que estou a ser paternalista com a tal senhora. Nem a compaixão é o sentimento que tenho por ela. Não, eu admiro-a intensamente pela tremenda carga que tem sobre os ombros e por, ainda assim ter esperança. Admiro-a por preserverar nela. Admiro-a por uma dignidade que apaga todo o kitsch. Admiro-a por ser capaz de coisas que não estão ao meu alcance.
Quanto à minha Igreja, acredito sinceramente que pensa algo semelhante. Por isso tolera. Por isso incentiva. A função da Igreja, da minha, da tua, de todas, é com certeza apontar os caminhos da Salvação. Mas também é consolar e amparar aqueles que necessitam. E todos necessitamos.

quarta-feira, maio 12, 2004

Post neo-realista sobre Fátima e mais algumas coisas 

Pergunta o David Bengelsdorff sobre Fátima, de Ourém: o que fazer com a senhora de meia idade, que através do sacrifício e da dor, pretende negociar com o Deus da Graça?

Presumo que estejas a falar daquela senhora de 57 anos que vem de S.Pedro do Sul. É gorda essa senhora e tem umas varizes monstruosas e uns pés disformes que lhe transbordam dos sapatos cambados. E é ignorante, coitada, nem a 4ªclasse tem. O marido morreu-lhe em França, há 15 anos, nem chegou ela a perceber de quê. Deixou-lhe apenas a casita, por acabar, a pensão que recebe, dois filhos que já se piraram e um outro que, pobrezito, fica todo o dia a babar-se numa cadeira de rodas que já nem roda. E deixou-lhe também dois sogros que já nem se levantam da cama se é que aquilo se pode chamar cama. A senhora, coitada, já nem pensa nem chora, só reza à Santíssima Nossa Senhora das Dores, amiga e protectora dos que sofrem e que a espera em Fátima neste mês que é Dela. Reza também aos beatos Francisco e Jacinta que morreram tão novinhos, coitaditos, mas foram ter com a Nossa Senhora e o Menino. E a senhora anda e anda pela estrada fora com outras senhoras iguais a ela. Anda e reza e canta ladaínhas foleiras e pueris. E tudo isto para que os dois filhos, aqueles ingratos que se foram embora, deem finalmente notícias e para que o mais novo, coitadinho, fique mais compostinho e que os outros dois tomem conta dele e dela quando tiver de ser e para que os velhotes possam depressa ir ter com Deus. E, se puder ser, para que não lhe doam tanto as pernas e que consiga finalmente a consulta no médico por causa daquela maldita dor no peito que lhe vem à noitinha. E para que vá havendo sempre pão à mesa para os quatro lá de casa. A boa senhora, desta vez, leva também uma encomenda para a Virgem Maria Auxiliadora feita pela vizinha da rua de baixo que, coitada, já nem sabe como se há-de haver com os quatro filhos, todos eles metidos naquela coisa da droga e que nem a deixam saír de casa e lhe batem e a roubam.
E é por todas estas intenções que a senhora se vai para Fátima, este ano como nos anteriores, para que Nossa Senhora, que foi mãe de Deus lhe diga a Ele para a ajudar a ela que tanto precisa, e louvado seja o Senhor, nosso Pai e Filho e Espírito Santo amen.

Como tu, meu caro David, eu nunca fui peregrinar a Fátima. Também a mim, como a ti, Fátima nada acrescenta à minha Fé, uma Fé consciente e reflectida, resultado de muitas leituras de e sobre a Palavra de Cristo. Também a mim, Fátima e o seu kitsch e os seus vendilhões de insignificâncias beatas, ofendem a minha estética e a pureza da minha espiritualidade. Mas, diferentemente de ti, eu não olho com dureza os milhares de peregrinos que vão ali negociar Graças de Deus em troca do seu sofrimento.
Não. Em toda aquela gente que faz uma coisa com que não me identifico mas que eu nunca seria capaz de fazer, o que eu vejo é gente que sofre e que é imensamente digna no seu sofrimento. O que eu vejo é uma Fé, que pode ser pouco esclarecida, um pouco grotesca até, mas que é uma enorme Fé no Deus em que ambos acreditamos.
E estou certo que o Deus da Graça, como tu lhe chamas, se compraz naquela gente, reconhece a sua grandeza e se apieda das suas dores.
E isso, por si só, justifica Fátima. Acredite-se ou não. Concorde-se ou não.

Hoje é dia de  



"Graced with guts
and gutted with Grace!
Squeeze your thoughts
and open your faith!
"


terça-feira, maio 11, 2004

E agora uma menos boa 

Nem sempre um cristão consegue ser Cristo. E eis que o CC sai da Quinta Coluna. Tenho pena pois achava graça àquelas "tricas e trocas" intra blog. Mas neste caso o CC tem toda a razão. E depois continuamos a contar com ele na Terra da Alegria. Já amanhã.

Uma grande e boa notícia! 

O vizinho do mar VOLTOU! Está cá desde dia 7 e só hoje é que reparei. Foi-se embora sem avisar e sem avisar voltou. Mas apenas quero dizer: ainda bem!

segunda-feira, maio 10, 2004

Ateísmo, inteligência, presunção e eugenia 

Nos contactos que tenho mantido com os ateus e ateias da blogosfera, com algumas honrosas excepções de que já aqui falei, tive frequentemente a estimulante sensação de o meu ocasional interlocutor me considerar um idiota chapado. Este facto surpreendeu-me sobretudo porque, com um árduo esforço, eu sempre tenho disfarçado as importantes limitações intelectuais com que nasci. E assim sendo, admira-me como é que estas mentes brilhantes com que me debato, topassem tão facilmente a minha atávica estreiteza mental. Ontem, finalmente, compreendi. É que esta gente expedita e industriosa, já estudou o problema da correlação entre inteligência e a crença religiosa, com todos os rigores e fundamentação do melhor método científico. E, conforme se pode verificar aqui, os resultados, apesar de alguns estudos dissonantes, apontam inelutavelmente para a nossa irremediável cretinice!
Está então explicada a origem do fenómeno religioso! E agora compreendo o significado daquela bem aventurança dos pobres de espírito. Mas atenção ó crentes como eu: o reino que nos prometeram vai ser-nos retirado!
Pois, embora com dificuldade, pensei nisto e vejo agora a ameaça! As elites sempre procuraram estabelecer sinais distintivos e, agora que a crença foi descoberta como sinal exterior de pobreza intelectual, negras ameaças pesam sobre nós! Qualquer dia quem traga uma cruz ao peito não conseguirá um emprego qualificado...
Agora a sério. Acho lamentável a simples ideia destes estudos. Parecem uma tentativa de autojustificação e autopromoção do cepticismo. Pior. Há qualquer coisa neles que recorda estudos feitos por organizações racistas para fundamentarem o seu racismo, por exemplo este. Lembram também teorias eugénicas que de novo, na América terra de todas as ideias, começam de novo a despontar. Leiam isto e descubram as diferenças...
Mas não queria terminar este post sem uma palavra de esperança para nós os crentes. Há instituições que nos podem proteger. Não estou a falar da Santa Madre Igreja. Nestes tempos de chumbo necessitamos de organizações militantes e lobbyistas. E, na América donde nos chegam aqueles Eugenistas, aqueles American Atheists, existem também organizações que defendem aqueles que, como nós, foram menos dotados intelectualmente. Talvez vos surpreenda a todos mas estou a falar-vos da NASA. Nada mais americano, nada mais adequado...

sexta-feira, maio 07, 2004

Fé e dúvida 3  

Caro João Vasco,

Não o querendo de forma alguma converter, queria contudo dizer duas ou três coisas quanto ao seu último comentário de ontem na Respublica. Tendo você lido o meu post anterior, continua a dizer que a doutrina em que acredito faz de mim um incoerente ao aceitar eu a dúvida como elemento criativo.
Ora bem. Você deve entender que a doutrina cristã é um corpo em que se hierarquizam vários elementos. Usando uma expressão que já escrevi aqui, a nossa doutrina é uma árvore com vários ramos e até com vários enxertos (!). E o elemento primordial, o tronco principal da árvore da doutrina é a Palavra de Deus tal como Jesus no-La deixou. Ora Jesus foi tolerante com a dúvida, a perplexidade, a dificuldade humana em compreender a Sua mensagem. E bom é que se entenda que a Palavra de Jesus é difícil de perceber, de aceitar, de ser vivida.
Por essa razão, e tal como Jesus aceitou a incredulidade de Tomé, é de aceitar e entender o surgimento de dúvidas e perplexidades nos crentes. Aliás, grandes doutores da Igreja, que contribuiram poderosamente para o actual corpo doutrinal cristão e católico, foram em muitos momentos assolados pela dúvida. É o caso de (em sua atenção retiro o Sto.) Tomás de Aquino, Anselmo de Cantuária, João da Cruz, Teresa de Lisieux, etc. Estes grandes crentes tiveram dúvidas, sofreram amargamente com elas, mas olharam-nas de frente e cresceram na Fé, deixando-nos obras que nos ajudam a nós crentes de hoje.
Outra coisa: eu sou um grande apologista do que disse (penso eu) Sto.Anselmo "crer para compreender, compreender para crer". É por isso que eu, tal como muitos outros crentes, vivo a minha Fé intimamente ligada à minha Razão. Contrariamente ao que classicamente é apregoados pelos ateístas, a Fé e a Razão não são inconciliáveis, são sim concomitantes: tem objectivos comuns, mecanismos comuns, coexistem no nosso cérebro.
Sendo assim, do mesmo modo que, cartesianamente, a dúvida é um instrumento da razão, também é instrumento da Fé. Concluindo, eu acho que o crente que tenha uma fé consciente e forte não deve ter medo da dúvida, não deve descartá-la e escondê-la para proteger a sua crença. Deve sim enfrentá-la, pensá-la e, com a graça de Deus, resolvê-a. Após tê-lo feito terá seguramente crescido na sua Fé.
Há ainda uma outra coisa importante mas que pouco lhe dirá pois você não é crente (digo isto sem qualquer desprezo ou paternalismo, acredite). É algo que eu próprio já considerei como sendo uma figura de estilo teológica mas que hoje sinto como uma realidade actuante: trata-se do Espírito Santo que nos foi oferecido por Deus e que será talvez Deus em nós. Quem confia no Espírito Santo não deve nunca recear a dúvida.
Termino agradecendo os seus pertinentes comentários pois suscitaram em mim reflexões produtivas.
Um abraço amigo.

quinta-feira, maio 06, 2004

Fé e dúvida 2 (artesanato teológico) 

Aquele meu post sobre Tomé, a Fé e a dúvida, suscitou algumas reacções em blogues amigos, umas discordantes, outras concoradantes, todas pertinentes. E suscitou um fluxo de mails, arrastados na habitual enxurrada de spam, mails esses tendencialmente mais críticos sobre a minha apologia da dúvida, como tão apropriadamente lhe chamou o David.
Todavia a crítica mais incisiva veio de onde eu menos esperava. Veio de um comentário feito pelo João Vasco a um post da Respublica sobre este assunto. Caso não conheçam o João Vasco é um ateu convicto e militante, sendo o cronista mais lúcido do blogue dos ateus.
Vejamos o que o João Vasco disse sobre o que escrevi e que poderia ser subscrito por muitos cristãos:
«"Tomé mostra-nos que, tal como na Razão, também na Fé a dúvida tem um papel determinante no caminho da Verdade e da Luz" - Recomendo a leitura dessa passagem Bíblica, que possivelmente já não recordam com exactidão... Se bem se lembram Jesus diz que se Tomé é bem aventurado por acreditar depois de ver, melhor aventurados são aqueles que acreditaram sem ver. Não consigo conceber que tipo de distorção interpretativa foi necessária para esse revisionismo doutrinal: "Tomé mostra como a dúvida é algo positivo"??? Francamente!!!».
Vou então explicar qual é a minha distorção interpretativa.
A última ceia tal como descrita nos capítulos 13 a 17 do evangelho de S.João, é o momento espantoso em que à beira da “Sua hora de passar deste mundo para o Pai”, Jesus reúne os apóstolos e faz-lhes uma espécie de “testamento ideológico” em que por actos (o lavar dos pés, por ex.) e por palavras resume e revela-lhes o essencial da mensagem que o Pai o incumbiu de fazer chegar aos Homens. E fá-lo perante onze discípulos subjugados pela Sua palvra mas incapazes de a compreenderem. Deslumbrados pela Luz mas cegos pelo seu brilho. Embora apenas Tomé tenha interpelado individualmente Jesus, advinha-se no texto o rumor duma incompreensão generalizada quanto ao alcance total das palavras de Jesus nessa noite: “Então alguns dos seus discípulos disseram uns aos outros: Que é isto que nos diz? Um pouco, e não me vereis; e outra vez um pouco, e ver-me-eis; e: Porquanto vou para o Pai?” (Jo 16, 17)
No fim Jesus pergunta-lhes “Credes agora?” (Jo 16, 31) e eles criam mas como se viu depois, e Jesus previra, eles não compreendiam. Aliás Jesus dissera-lhes que só “quando vier aquele, o Espírito de Verdade, ele vos guiará em toda a Verdade”(Jo 16, 13).
Como sabemos, só depois de terem visto Jesus ressuscitado é que os apóstolos perceberam que Ele era verdadeiramente Filho de Deus. É por isso que eu acho que Tomé, que não estava lá da primeira vez, não é menos crente que os outros. Não. Ele, que perguntara a Jesus que caminho era o Dele, era talvez um pouco mais orgulhoso do que os outros. E como não esteve da primeira vez, ressentiu-se. Achou-se por isso no direito de ter uma revelação especial, mais substancial. E Jesus, que é Deus, deu-lha. E Tomé vendo a enormidade da situação, vendo ali Deus à sua frente oferecendo-lhe simplesmente as Suas chagas, despenha-se do seu orgulho e solta aquele grito aflito que ainda hoje ecoa: “Meu Senhor e meu Deus”.
É por isso que eu sinto que Tomé, por ter duvidado e ainda assim ter visto, foi talvez aquele que melhor viu Deus, no Jesus ressuscitado que ali estava. Tal é a infinitude do amor de Deus por nós.
Atentemos agora na frase seguinte de Jesus: “Porque me viste acreditaste. Felizes aqueles que acreditam sem terem visto”. Essa é uma frase dirigida a nós todos. A nós por quem Jesus orou ao Pai na noite da última ceia: “E não rogo somente por estes, mas também por aqueles que pela sua palavra hão de crer em mim” (Jo 17,20).
Nós estamos todos no papel de Tomé: não vimos. Mas, contrariamente a Tomé, não vamos poder tocar em Jesus. Porém temos mais meios para compreender a Palavra de Jesus, que felizmente chegou até nós: “Estes sinais foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome.” (Jo 20,31)

Quanto à dúvida e ao seu papel na Fé, fica para próximo post que este já vai longo e estou cansado.

terça-feira, maio 04, 2004

Hoje tapa a Lua, amanhã anda à roda... 





Fé e dúvida 1 

O meu "brüder" David Bengelsdorff é, como eu, persistente nas suas convicções. Hoje, a propósito, do meu post de ontem, que ele chama muito apropriadamente de apologia da dúvida, ele volta a um debate que já tivemos anteriormente e que recordo aqui e aqui .
Não penso que o que nos separa nesta questão sejam questões semânticas. Penso que, efectivamente são diferentes maneiras de pensar a Fé, provavelmente devidas a diferentes formas de termos entrado nela. E não penso que tenha algo a ver com o facto de ele ser evangélico e eu católico, até porque conheço católicos que pensam exactamente como ele e admito que hajam protestantes e evangélicos que pensam como eu.
Este é dos tais casos em que respeito imensamente a opinião do David, mas continuo na minha.

segunda-feira, maio 03, 2004

Tomé, com sombra de dúvida 

No evangelho de hoje (João 14), fala-se novamente de Tomé. Passa-se na última ceia e está Jesus a dizer: "E quando eu for, e vos preparar lugar, virei outra vez, e vos levarei para mim mesmo, para que onde eu estiver estejais vós também. Mesmo vós sabeis para onde vou, e conheceis o caminho. Disse-lhe Tomé: Senhor, nós não sabemos para onde vais; e como podemos saber o caminho? Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim".

Decididamente gosto de Tomé, o apóstolo que duvida, sempre que aparece no Evangelho. Gosto dele porque ao ter duvidado que Cristo tivesse aparecido aos restantes fez com que Ele aparecesse novamente para que Tomé o visse. E para que Tomé caísse de joelhos e soltasse aquele grito abismado, ao mesmo tempo deslumbrado e dorido, grito nunca dito por ninguém até esse momento: "Meu Senhor e meu Deus!". Um grito de quem viu finalmente a Verdade e lamenta não tê-la visto antes. Gosto dele novamente porque hoje foi ele a dizer a Jesus a dúvida que ia na cabeça de todos os outros: "qual é o Teu caminho?". E ao perguntar isto proporciona a que Jesus diga a ele e a nós todos uma frase luminosa que tudo define, tudo resume: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida!

Tomé não tem medo das dúvidas, não tem medo de levantar interrogações. E teve a graça de ter tido resposta às suas perguntas, subindo assim para um novo patamar da Fé.
Tomé mostra-nos que, tal como na Razão, também na Fé a dúvida tem um papel determinante no caminho da Verdade e da Luz. Por muito que nos doa termos dúvidas devemos dar graças por tê-las. Pois é de dúvida em dúvida que chegaremos a Deus.


sábado, maio 01, 2004

O valor das palavras 

Anda alguma blogosfera excitadíssima com um novo desígnio de limpar a língua portuguesa de expressões e palavras inúteis. Isto deve ser preocupação de gente muito letrada. Eu, que sou apenas engenheiro, sempre senti falta de palavras, sempre tive a noção de que a nossa língua tem palavras a menos. E que as expressões, por mais estúpidas que sejam, ilustram bem a nossa identidade, penso eu de que...
Mas porque estou eu a dizer isto? Acontece que, por razões que serão inteligíveis para os leitores mais atentos, ando a ler Ruy Belo (pela primeira vez na vida...). E hoje li dele algo interessante sobre palavras:

"Conheço as palavras pelo dorso. Outro, no meu lugar, diria que sou um domador de palavras. Mas só eu – eu e os meus irmãos – sei em que medida sou eu que sou domado por elas. A iniciativa pertence-lhes. São elas que conduzem o meu trenó sem chicote, sem rédeas, nem caminho determinado antes da grande aventura.
Sim, Conheço as palavras. Tenho um vocabulário próprio. O que sofri, o que vim a saber com muito esforço fez inchar, rolar umas sobre as outras as palavras. As palavras são seixos que rolo na boca antes de as soltar. São pesadas e caem. São o contrário dos pássaros, embora «pássaro» seja uma das palavras. A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida não interessa. Alguém que me procure tem de começar – e de se ficar – pelas palavras. Através das várias relações de vizinhança, entre elas estabelecidas no poema, talvez venha a saber alguma coisa. Até não saber nada, como eu não sei."

Ruy Belo

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