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segunda-feira, janeiro 31, 2005

De Aetatibus Mundi Imagines (1) 

O primeiro dia: O caos e a criação da luz

No princípio, Deus criou o Céu e a Terra. A Terra estava informe e vazia. E as trevas cobriam a face do abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: «Faça-se a luz» e a luz apareceu. E Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas e chamou à luz dia, e às trevas noite. Assim surgiu a tarde e, em seguida a manhã; foi o primeiro dia.



«A pag. Contem a imaginação do que seria o mundo ãtes criado, q os gentios chamarã o Caos. E Juntamente com a criação da luz, que começa a fazer dia distinto das trevas, q fazem noyte» (Francisco D´Ollanda)

Ver Idades 

Já aqui falei, em 20 de Dezembro da descoberta que fiz duma edição fac-similada do Livro das Idades de Francisco de Holanda cujo exemplar único se encontra guardado na Biblioteca Nacional de Espanha. Não havendo na net qualquer reprodução das fantásticas ilustrações deste pintor renascentista português, prometi então remediar parcialmente isso. Foi o que fiz, artesanalmente e com a preciosa colaboração do Fernando.
Vou começar devagarinho e pelo princípio: a Idade Primeira, ou seja o Génesis, ilustrado de forma que jamais vi.

sábado, janeiro 29, 2005

Gott in Himmel und Mann im Auschwitz  

De uma leitura de viagem, nesta semana e bem a propósito:

"O que me espanta nos ateus é que, tendo perdido a fé em Deus, continuem a ter confiança no homem. Como encontrar coragem para continuar a viver na Terra se estamos convencidos de que a Humanidade está entregue às monstruosidades do homem? O que nos distingue dos ateus é que para nós crentes, o Mal, apesar de absurdo, nunca terá a última palavra na História"

Shafique Keshavjee, "O rei, o sábio e o bobo" (ed. Temas&Debates)

Para ler ainda um post absolutamente honesto sobre isto tudo: no Lutz, claro!


domingo, janeiro 23, 2005

Caviar House ou o bloco sanitário 

Já prometi várias vezes não falar aqui de política. Contrariamente a vários dos meus amigos da Terra da Alegria, eu tenho uma visão cada vez mais minimalista da política. Eu acho que ela, sobretudo a partidária, tem cada vez menos a ver seja com o que fôr. Mas mais uma vez vou aqui quebrar uma promessa pois aparece sempre alguém a tirar-me do sério.
Neste caso tratou-se do inefável Louçã e aquela tremenda tirada no seu debate com Paulo Portas. Quando começaram a terçar armas sobre o aborto, toda a gente pasmou ao ouvir este benemérito cortar a palavra a Portas com uma frase dita num tom esganiçado, semelhante ao duma daquelas tias do Juntos pela Vida: “Não me fale de vida, não tem direito a falar de vida!" Só faltou o por amor de Deus! E porque não? perguntou Portas, começando a desabar daquela sua pose imperial. E Louçã foi implacável: "O senhor não sabe o que é gerar uma vida. Não tem a minima ideia do que isso é. Eu tenho uma filha. Sei o que é o sorriso de uma criança. Sei o que é gerar uma vida." Portas ficou varado e a conversa ficou por aí, talvez com vantagem para ambos.
Mais tarde assistiu-se à reacção corporativa do Bloco de Esquerda, indigna das suas pretensões libertárias, vindo quase todos a terreiro defender o seu paladino. Luís Fazenda foi um dos que frisou o "contexto" para explicar as afirmações de Louçã, salientando também a "enorme arrogância da direita"! A inteligente Ana Drago diz que o dirigente do BE "acabou por expressar a indignação" que foi já sentido por muitos por serem "atacados como assassinos". Uma tal Helena Pinto defende Louçã acusando Portas de "passar das marcas": "Paulo Portas acusa quem defende a interrupção voluntária da gravidez de defender a morte." E (...) o que Louçã fez foi "usar o seu exemplo pessoal para responder a uma acusação muito grave". Mas melhor que todos, melhor ainda que o próprio Louçã, esteve aquele moço Teixeira Lopes, que veio agravar ainda mais o caso. Segundo este impetuoso mancebo do Porto “há um limiar de hipocrisia muito forte da parte de Paulo Portas, que constrói uma fachada de conservador, de homem de Estado, mas que depois não a leva até às últimas consequências. Ou seja, (...)para ser fiel aos princípios que professa Paulo Portas deveria constituir família e ter filhos”!!! (Citações do Público).
Enfim, honra seja feita a Luís Januário, colega aqui na blogosfera mas candidato por Coimbra e que classificou no blogue onde escreve, as afirmações de Louçã como "uma grosseira utilização da biografia privada do opositor, sem ligação aos temas em debate, e introduzindo um aspecto irrelevante para a bondade dos argumentos." Haja alguém coerente...
O que é giro é que, a partir de agora, o nosso Bloco deixa de ter qualquer autoridade moral ou política para defender a adopção de crianças por homossexuais, pois estes não sabem o que é gerar vida, a partir de agora estes senhores já não podem defender tudo o que possa ameaçar a família tradicional. Ainda bem, rapazes, continuem!
Mas eis sem dúvida um episódio lamentável: pela torpeza tão igual à dos outros partidos menos puros, pela hipocrisia tão cuidadosamente escondida mas que saíu toda ela, numa golfada involuntária mas indisfarçável.
Devo dizer, contudo, que esta cena desta Esquerda Caviar, tão pura e tão cândida, toda ela pureza e limpeza, não me surpreende minimamente. E traz-me longínquas reminiscências passadas de que me apetece hoje falar aqui.
Há já bem mais de 10 anos, ainda não existia o Bloco, comecei a reparar num fenómeno curioso no meio em que me movia e me movo: muitos meninos-família começaram a aproximar-se dum partido que começava a dar nas vistas, o PSR. Como isso aconteceu também ao meu maninho mais novo, interessei-me e resolvi averiguar. Cheguei na altura à conclusão que não era nem o socialismo nem a revolução nem os trabalhadores que atraíam toda aquela juventude, mais ou menos dourada. Aliás, a esmagadora maioria estava-se nas tintas para o trotskismo, nem queria saber o que era esse bicho feio. O que eu penso que verdadeiramente atraía e ainda hoje atrai toda aquela boa gente era e é aquele doce discurso libertário e desresponsabilizante. Numa altura em que pontificava a feíssima geração yuppie, a malta mais nova quis ser um bocado hippie. E onde melhor o ser do que no PSR? Aquilo ficava no Bairro Alto e tudo, a paz e o amor difundia-se pelo fumo dos charros, enfim uma delícia!
Nos episódicos contactos que tive com aquilo deparei com coisas pitorescas e picarescas. Podia contar meia dúzia de episódios mas fico-me por um deles, que acho ser o mais significativo apesar de ter andado um bocado esquecido nos confins da minha memória. Daí um ou outro detalhe impreciso ou omitido. Mas o essencial está lá. Senão vejamos.
Passa-se isto há 11-12 anos, não sei precisar. O meu irmão mais novo, que seguia com calminha o seu curso universitário e andava meio deslumbrado pelo “mundo” alternativo que se sentava à volta da fogueira trotskista, contou-me que 2 ou 3 amigos dele estavam envolvidos numa ocupação dum velho e enorme casarão devoluto para os lados de Benfica. E, movido pela curiosidade, fui com ele uma noite conhecer o misterioso movimento okupa. Cheguei lá, carregado de pizzas e latas de cerveja, e sentei-me um bocado com aquela malta, aí uns 15 rapazes e raparigas, entre os quais reconheci irmãos e primos de amigos meus. Ficou logo claro que o “cota” que eu era podia ali estar apenas por ser irmão de quem era e por ter trazido todas aquelas pizzas. Mas adiante. Pouco ou nada falei mas ouvi muito e passeei um bocado por aquele pardieiro novamente cheio de vida. Foi aliás nessa noite que li pela primeira vez, pintada numa parede, uma frase que resumia já então toda uma atitude perante a vida e o mundo, o célebre “Não te prives”! Fiquei logo ali convencido que dificilmente se podia dizer algo mais monstruosamente egoísta mas aquela malta dizia-o como se fosse o lema de futuros luminosos em que a tolerância e a solidariedade teriam já varrido as injustiças sociais dos nossos tempos.
Ora, precisamente, já passava da meia noite quando pediu ali entrada um grupo de 3 jovens de origem africana: um casalinho aí pelos 15-16 anos, ela em adiantado estado de gravidez, e um rapaz mais velho e muitíssimo magro, aí pelos seus 18 anos. Duma forma quase humilde contaram que tinham fugido das suas casas, em Chelas, e que tendo sabido que aquela casa tinha sido okupada vinham ali pedir um tecto que não sabiam onde mais o arranjar.
Foi então que tive a oportunidade de reparar melhor num rapaz alto e de forte vozeirão, que era sem dúvida o líder e ideólogo daquela operação okupa. Para minha estupefacção e grande embaraço do meu irmão, aquele belo rapaz levantou-se imediatamente e, tomando conta da ocorrência, pôs-se a falar. Disse coisas espantosas: que o movimento okupa era um estilo de vida alternativo, com uma forte matriz ideológica, que a ocupação de casas era uma acção coordenada de afirmação dessa ideologia, que os membros do grupo tinham que ter uma grande afinidade e homogeneidade cultural e ideológica por forma a fazerem os sacrifícios que este modo de vida lhes impunha. E saiu-se com uma pérola inesquecível: “o movimento okupa não se pretende substituír aos planos de realojamento da Câmara de Lisboa”! E logo a seguir, melifluamente, que ali não era o lugar adequado para aqueles três jovens africanos, o que não significava que eles não contassem com a sua total solidariedade! E eles, coitados, lá se levantaram e foram-se dirigindo para fora.
Estava já eu completamente passado com aquilo e disse ao tal grande líder algo mais ou menos assim: “Ó meu cabrão hipócrita, essa conversa da treta da solidariedade e da tolerância não te serve sequer para ajudar quem precisa mesmo de alojamento, muito mais do que estes meninos e meninas que estão aqui só para chatear os ricos paizinhos! Agora o que vou fazer é oferecer 10 contos a estes gajos e dar-lhes uma boleia a uma pensão ou residencial que eles escolham! Bem podes dizer que isso é caridade mas esta caridade vale muito mais que a tua solidariedade de filho da puta!”
Gerou-se um sururu do caraças, tudo aos gritos, fascista, nazi e coisas assim, e o meu irmão empurrou-me dali para fora junto com os três desgraçados. E lá fomos os dois deixá-los na Praça do Chile com os tais 10 contos, o que na altura ainda era dinheiro.
Ora aquele rico menino, tão talentoso e que ficou tão zangado comigo, não desapareceu de circulação. Antes pelo contrário. Estudou, trabalhou e prosperou. E continua hoje, pelos lados do Bloco, a arrotar postas de pescada. Não vou dizer quem ele é, até porque não digo quem eu sou. Mas ele costuma ler os blogues e se vier cá parar, saberá bem do que estou a falar. Quem sabe até me manda um mail!
E, pronto, fico-me por aqui que já estou com a pulsação alta. Mas, ao ver aquela beatice do Louçã, não pude deixar de me lembrar desta cena longínqua. Por causa da qual o Bloco nunca me enganou: para mim eles são o maior logro ideológico e intelectual da política portuguesa e nunca irão ter o meu voto. Mesmo neste triste momento em que me acho moralmente impedido de votar onde sempre votei. Antes no PCP, ou no MRPP, ou até no PP! Ou, mais certo, votando nulo escrevendo frase reaccionária!


sexta-feira, janeiro 21, 2005

O fogo e as cinzas 

1ºandamento
Acredito que hajam pessoas que queiram mesmo salvar o mundo, que ofereçam as suas vidas aos outros, que deem mesmo as suas vidas pelo próximo. Acredito como Tomé acreditou: apenas porque já vi pessoas assim. Vi já pessoas a irem para os confins do Mundo ou para os confins dos subúrbios viver com quem nada tem, com quem já nada espera. Vi já pessoas trocarem profissões honrosas por trabalhos que verdadeiramente honram a sua condição de filhos de Deus. Vi essas pessoas escolherem mudar de vida sem esperar sequer vir a conseguir mudar muita coisa, esperando apenas que oferecendo uma boa parte de si possam devolver a dois ou três semelhantes a melhor parte deles próprios. Vi pessoas fazerem opções assim sem exigir quaisquer resultados do seu trabalho, apenas tendo esperança em que eles surjam, apenas porque assim é que deve ser. Vi essas pessoas mudarem, vi-os sofrer como sofrem aqueles a quem se ofereceram, vi alguns tornarem-se tristes por verem finalmente a infinita tristeza no mundo, vi outros mais afortunados, mais fortes talvez, encontrando a exaltação na simples e ignorada grandeza do que estão a fazer. Em todos vi, mesmo na ausência de resultados do seu sacrifício, a consciência, sofrida ou alegre mas sempre tranquila, do enorme sentido do que estão a fazer, da coerência absoluta das suas vidas com aquilo em que acreditam.
Ainda no Expresso da passada semana, no suplemento Única, li uma coisa admirável sobre um grupo de pessoas que fazem um gesto que, neste mundo amoral e cínico, parece ser o gesto mais inútil e gratuito de todos. Estou a falar da associação AMARA, dirigida por uma monja budista portuguesa, e que dedica a sua acção nos cuidados paliativos a doentes terminais. Num mundo em que o ideal da liberdade do próximo é usada como falso pretexto para assegurar a minha comodidade e a minha desresponsabilização, é tocante ver esta alternativa à eutanásia: ajudar a morrer bem, a minorar o sofrimento terminal, a dar-lhe algum sentido. Isso é imensamente mais difícil e menos prático do que ajudar a morrer quem sofre e quer parar de sofrer. Mas, isso sim, é que é verdadeiramente humano pois ajuda o próximo que se finda, ajuda-o a morrer mantendo a sua dignidade até ao fim. E como a dignidade é feita de coragem e de amor, grandes são as pessoas que se mantém ao lado das que vão morrer, que lhes dão a mão até ao fim. E os seus pacientes morrem certamente mais preparados, num movimento de aceitação e não de desistência, de esperança e não de desespero, num momento acompanhado e não solitário. Num mundo que procura esquecer a morte, a ponto que fica abismado quando ela surge de rompante e em força, num mundo que dá tanto valor ao irrevogável direito de nascer bem, crescer bem e viver bem, é bom ver que há ainda gente que sabe também do direito de morrer bem e que age em conformidade.

2ºandamento
Se eu fosse de me revoltar, revoltar-me-ia o contraste entre tudo isto e a palhaçada ficcional deste momento político, em que as diferenças apregoadas são meros arranques de retórica de almanaque, em que todos nós só queremos acreditar e admitir aquilo que nos convém a nós próprios, a cada um de nós, mesmo sabendo da inutilidade da opção em que no fundo, todos nós pretendemos outorgar a terceiros, de preferência virtuais, como virtual é o Estado, as nossas obrigações de seres humanos, filhos de Deus e irmãos de outros seres humanos como nós.
Mas não me revolto, até porque reconheço também a minha incapacidade de ser como essas pessoas de que falei acima. Por isso finjo às vezes que acredito de que há por aí um grupo, uma organização, capaz de nos governar a todos, sobretudo aos que mais precisam. Mas desta vez não vou fingir acreditar naquilo em que não acredito. Desta vez vou deixá-los a gritar sozinhos, alvoraçados pela ilusão da sua própria oratória. Desta vez ficarei em casa. E talvez seja isso um pequeno passo para um dia eu mudar de vida, eu que não gosto de me privar, eu que exijo sempre resultados dos meus esforços. Talvez um passo para um dia, sabendo que tudo nos é permitido mas nem tudo nos convém, eu venha a fazer pelas minhas prórias mãos aquilo que mais convém ao Outro e aos outros.
Queira Deus.

quinta-feira, janeiro 20, 2005

A terra, o macaréu e o charco 



Foi ontem. E a nós, não há Hokusai que embeleze a coisa.

terça-feira, janeiro 18, 2005

um pequeno esclarecimento 

Talvez o título do post anterior, sugerindo tristes reminescências beatleanas, tenha induzido alguns amigos e leitores em erro. O post anterior não foi uma lamentação, foi sim uma acção de graças! Um pouco sóbria demais mas definitivamente uma acção de graças.
Há dois ou três séculos eu teria resolvido isto com ex-voto:

M.Q.F. Sto.Expedito a hum seu devoto que istando em grande tribulaçam se pegou logo. Gloriae Pater, Fili et Sancti Spiritu. Amen.

domingo, janeiro 16, 2005

The long and winding road 

5 de janeiro
Finito. Completo. Acabado. Concluso. Terminado. Um longo e dolorosíssimo processo. Uma interminável demanda. Um infindável remar contra a maré para quem se julga mais vocacionado para as doces bolinas ao vento. Uma desesperante sucessão de esperanças miríficas alternando com amargas desilusões. Uma angústia persistente e dorida. O reconhecer constante de uma tendência que nos condenava a mim, aos que de mim dependiam e os que em mim confiaram. Um impasse resistente. Janelas abrindo-se mas portas fechando-se. Oportunidades surgidas e imediatamente agarradas, reduzidas logo depois a nada, um nada absoluto e insultuoso. A visão do fim, do fracasso absoluto, tal qual ele é, olhos nos olhos. A descoberta vergonhosa de que, no fundo, já o desejava, num desejo de olvido. E já depois de decidirmos acabar com tudo, eis a última esperança que surge, já sem ninguém acreditar nela. E ainda assim, mergulhar nela de cabeça, e surpreendentemente, ver a praia à nossa frente e, num último esforço, chegar a ela, levantar, correr e chegar ao único destino que nos convinha.
E agora que acabou e que recomeço de novo, ponho-me a pensar. Penso nas longas horas de pensamento solitário. Nas longas conversas. Na observação do evoluír das coisas, sempre de acordo com os meus receios. Na resiliência inesperada que encontrei em mim mesmo e naqueles que estiveram comigo. No desgaste tremendo que foi tudo isto. Naquelas duas vezes em que fui parar ao hospital, quando a quotidiana descarga de adrenalina ultrapassou os limites do meu corpo. Sobretudo numa das duas vezes, a mais recente, quando o meu filho mais velho estava ao meu lado e consegui passá-lo à minha mulher sem ele nada ter percebido. Penso em todo o tempo de mulher e filhos que perdi longe deles. Penso como deve ser grande o amor deles por estarem ainda assim comigo. Penso que, embora inteiro, não passei certamente incólume por tudo isto, embora não saiba ainda bem onde me ficaram as sequelas. Penso que, apesar do sentimento de se estar preso a uma engrenagem, acabei por também me divertir no meio dela. A iminência do desastre excitou-me estranhamente. A coesão, a força de todos nós, orgulhou-me a mim, eu que tanto receio o orgulho. Senti-me vivo, talvez demasiado vivo. Senti-me na merda mas nunca me senti vítima. Nunca me senti abandonado por Deus. Talvez não tenha sido Ele a arranjar a solução; certamente não terá sido pois sei que Ele não cuida destas coisas menores. Mas foi ao longo destes quatro longos e rapidíssimos anos que eu percebi que não tinha que Lhe pedir nada excepto força para aguentar. Aguentar tudo o que viesse a ter. Pois não mereço nunca mais do que isso. E essa força Ele deu-ma. E espero que também me tenha dado a humildade para perceber que, verdadeiramente, tive eu e tivemos todos uma sorte do caraças. Passado todo este tempo sou talvez mais forte do que era antes. Espero também que a minha grimpa que tanto baixou nestes tempos de chumbo, se mantenha baixa. E que eu tenha finalmente percebido aquilo que é verdadeiramente importante.


segunda-feira, janeiro 10, 2005

Serviços mínimos 

Queria pelo menos guiar-vos para a terra da alegria, onde estão hoje dois textos brilhantes, um do Zé Filipe, outro do Lutz.

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Amazing Grace 

Meu Senhor e meu Deus,

Agora que tudo se cumpriu
e tudo começa de novo;
agora que passámos a porta,
queria oferecer-Te algo.
Mas tenho tão pouco
para Te oferecer,
que Te ofereço esta dôr
que me doeu,
ofereço-Te este cansaço
que me moeu.
E se foi por seu intermédio
que eu pude mudar em mim,
e se foi apenas por sua causa
que eu pude aproximar-me de Ti,
peço-Te então que mos retenhas
dentro de mim.
Para que não o esqueça.
Para que Te não esqueça.

Amen.

terça-feira, janeiro 04, 2005

Rezas 

Se queres mesmo que te diga, meu caríssimo Tiago, é igual a confusão que me faz o tão evangélico 'personal Jesus' como o 'santinho particular' que responde com tão prolixa benevolência à devoção especial de tanto católico. Entre o Jesus que me ajuda a atravessar uma tormenta profissional e a NªSª das Dôres para quem tenho uma reza infalível para morigerar um pouco estes padecimentos que me atormentam a zona lombar esquerda, não vejo diferença por aí além. Não me leves a mal mas parece que andamos aí perto do “milagre que Deus tem para si” que nos prometia a todos o inefável Bispo Tadeu.
Isto será conversa para um outro café, mas sempre te vou dizendo que já há muito ano que não rezo por mim. Talvez por não me sentir assim tão perto de Deus e seguramente por achar que rezar assim me afasta Dele.
E chego então aos Taizés de quem tu falavas. É que não estive mesmo cá na semana passada, cheguei ontem mesmo, e por isso passei infelizmente ao lado da coisa. Mas do que li do irmão Roger e do que conheço de amigos que por lá passaram há anos, acho que gosto das rezas daquela gente. A coreografia é sóbria, a música é óptima (montes de Bach!) e reza-se sem pedir aquela coisa que tu tens a obrigação de detestar: a intercessão!
Ah! E não concordo nada que tu chames “católicos místicos” aos de Taizé, aquilo é essencialmente uma comunidade orante, com uma prática e um ritual muito mais religiosos (exotéricos) do que metafísicos (esotéricos). Não se fazem por ali grandes devaneios teológicos. Celebra-se, reza-se a Deus e é na oração que eles entreveem a Unidade.

segunda-feira, janeiro 03, 2005

Terra firme 

Hoje uma edição memorável: com os livros dos Provébios, da Sabedoria e das Lamentações. Por essa ordem.
Frase do dia: Para lá do pão há um infinito à nossa espera. E o essencial, não é saber o que está depois, mas sim desejá-lo! (Afonso)

Restart 

Volto dumas (afinal) imerecidas férias, em que me abstraí das minhas dôres e infelizmente me abstraí também das grandes dôres que atravessaram o mundo. Pegando de novo nesta coisa, começou por me apetecer apagar o último post que aqui deixei, era ainda 23 de Dezembro. Só não o fiz por rigoroso princípio editorial deste blogue.
Mas o facto é que aquela frase, escrita tão ingenuamente num cartão de boas festas, colide chocantemente com o que se passou uns dias depois e com o que tenho lido por aí sobre a associação desta catátrofe de dimensões bíblicas à inefável questão da existência ou inexistência de Divindade, questão sempre tão atiçada nos momentos em que se deve discutir antes a existência de humanidade nos nossos corações.
Mas acabei por ler coisas bem ditas: no Expresso a habitualmente caprichosa Clara Ferreira Alves (link indisponível) e na blogosfera um grande, grande post do alerta amarelo, que diz tudo o que havia a dizer sobre o Deus dos maremotos.
Lendo a Clara, perguntando porque é que durante toda uma semana se falou muito mais de Phuket, onde os cerca de 5.000 mortos eram em boa parte turistas cá da boa e velha Europa, do que da catástrofe, essa assim espantosamente imensa, da zona remota e insalubre de Aceh; e lendo o Afonso dizendo que quanto mais afastados andam os homens mais longe andam de Deus; lendo tudo isso, recordo umas páginas bem actuais de Eça de Queiroz sobre “As catástrofes e as leis da emoção”:

«Meus caros leitores, (...) este nosso velho Mundo tem sido visitado por males inumeráveis, uns trazidos pelas violências da natureza, outros pela violência dos homens, porque o consciente e o inconsciente rivalizaram, como sempre na produção da dôr.
No Japão foi um desses pavorosos “macaréus”, que tanto assustavam os nossos navegadores do séc.XVI, invadindo em desmedido vagalhão léguas de costa e lambendo aldeias, cidades, centenas de milhares de criaturas, como se fossem apenas conchas e areia leve.(...) Mas eu não sei, meus amigos, se estas desgraças vos interessam, vos comovem – porque a distância actua sobre a emoção exactamente como actua sobre o som. A mesma dura lei física rege desgraçadamente a acústica e a sensibilidade.(...) Mas então essa fraternidade humana, pela sublime força da qual nada do que é humano deve ser alheio ao homem? Não existe? Oh, certamente – mas para todo o homem, mesmo o mais culto, a humanidade consiste essencialmente naquela porção de homens que residem no seu bairro. Todos os outros, à maneira que se afastam desse centro privilegiado, se vão gradualmente desarmonizando em relação ao seu sentimento, de sorte que os mais remotos já quase os não distinguem da Natureza inanimada


(in Bilhetes de Paris)

Passam os séculos e ficamos na mesma. E dizem que a culpa é de Deus...


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